terça-feira, 19 de agosto de 2025

A Evolução Urbana – Da Pré-História à Antiguidade

Linha do tempo da evolução urbana Do Paleolítico e Neolítico à Idade dos Metais e às civilizações da Antiguidade: Mesopotâmia, Egito, Vale do Indo, China, Grécia e Roma. Paleolítico /Mesolítico Neolítico Idade dosMetais Mesopotâmia Egito Vale do Indo China Grécia e Roma
Linha do tempo: sedentarização, Idade dos Metais e consolidação urbana nas civilizações da Antiguidade.

Conceito de evolução urbana

A evolução urbana pode ser entendida como um processo histórico e cumulativo de transformação dos assentamentos humanos, no qual formas espaciais, técnicas e institucionais se aperfeiçoam em resposta a desafios demográficos, produtivos, políticos, simbólicos e ambientais. Tal evolução não é linear nem homogênea; resulta de múltiplas trajetórias regionais que, em certos momentos, convergem para soluções estruturais semelhantes: adensamento populacional, divisão e especialização do trabalho, centralidade administrativa e religiosa, circuitos de troca e mecanismos de defesa. À luz dessa perspectiva, a cidade emerge não apenas como artefato físico — ruas, praças, muralhas, edifícios —, mas como um sistema de relações socialmente produzidas, que articula economia, poder e cultura numa unidade territorial relativamente estável. A urbanização, portanto, é indissociável do controle do excedente agrícola, da capacidade de registrar e administrar informações (escrita), do desenvolvimento de técnicas de mensuração e demarcação (agrimensura), e da formação de instituições que coordenam conflitos e tomam decisões coletivas. Em suma, compreender a evolução urbana implica relacionar a materialidade do espaço construído com a historicidade das formas de vida que o estruturam, pois é na co-produção entre sociedade e território que se forjam os traços duráveis da cidade.

Historicamente, duas revoluções se destacam como vetores primários da urbanização: a revolução agrícola, que viabilizou a sedentarização por meio do cultivo sistemático do solo, domesticação de animais e formação de excedentes; e a chamada revolução urbana, caracterizada pela consolidação de funções diferenciadas no espaço (residencial, produtiva, religiosa, político-administrativa), pelo surgimento de hierarquias sociais e pela institucionalização de mecanismos de registro e contabilidade. A passagem de acampamentos móveis a aldeias permanentes e, destas, a cidades com espaços públicos definidos, sistemas viários e obras de infraestrutura supõe progressivo domínio técnico (irrigação, drenagem, arquiteturas de terra e pedra), assim como crescente complexidade organizativa (corpos sacerdotais, exércitos, escribas, artesãos). No plano cognitivo, a escrita e a cartografia embrionária funcionam como tecnologias de governo do território, articulando controle fiscal, defesa e planejamento. Dessa forma, a evolução urbana é menos a história de edifícios do que a história de instituições, técnicas e imaginários que, em interação, produziram centralidades duráveis e formas urbanas reconhecíveis desde a Antiguidade :contentReference[oaicite:0]{index=0}.

A cidade na Pré-História

No horizonte pré-histórico, a vida coletiva organizava-se, de início, em bandos e clãs nômades dedicados à caça, pesca e coleta, com mobilidade condicionada à sazonalidade dos recursos. O quadro se altera no Neolítico, quando a domesticação de plantas e animais, a polimento da pedra e a invenção de recipientes cerâmicos permitem acumulação, armazenamento e, por conseguinte, permanência territorial. Fixadas junto a cursos d’água, as comunidades passam a praticar irrigação rudimentar, organizar defesas contra predadores e grupos rivais e construir habitações contíguas — germes de um tecido urbano ainda embrionário. A sedentarização produz densidade social suficiente para diferenciar ofícios, estabelecer autoridades e intensificar trocas, mesmo que episódicas, com outros agrupamentos. Não se trata ainda de cidades no sentido clássico, mas de assentamentos protocívicos com algumas funções urbanas: gestão de excedentes, proteção coletiva, rituais comunitários e redes de reciprocidade. O passo decisivo não se dá de uma vez só: ele resulta de sequências longas de experimentação técnica e institucional que, em determinados sítios, convergem para formas de organização mais complexas :contentReference[oaicite:1]{index=1}.

Entre os sítios arqueológicos do Neolítico, certos exemplos ilustram bem a transição. Jericó (Palestina, c. 9.000 a.C.) apresenta evidências de fortificações precoces e planejamento espacial elementar voltado à proteção e ao controle de recursos hídricos; Çatalhöyük (Anatólia, c. 7.500 a.C.) exibe malha densa de habitações interligadas, virtual ausência de vias formais e uma sociabilidade que se organiza a partir dos telhados e pátios, sugerindo circulação não hierarquizada e forte coesão interna. Em ambos, o controle de excedentes, a ritualização dos mortos, a divisão sexual do trabalho e a especialização artesanal constituem sinais distintivos de complexificação social. A proximidade de rios e terras aráveis condiciona a localização, enquanto o armazenamento de grãos e a domesticação de caprinos e bovinos estabilizam a permanência. Embora o léxico de “cidade” ainda seja anacrônico, esses assentamentos prefiguram funções urbanas — gestão de recursos, defesa, culto — que serão ampliadas na Antiguidade :contentReference[oaicite:2]{index=2}.

O que a bibliografia denomina “revolução urbana” não descreve um evento pontual, e sim um limiar em que a densidade demográfica, o volume de excedentes e a complexidade dos vínculos sociais tornam praticamente inevitável a instituição de papéis diferenciados e hierarquias. Agricultores e pastores se especializam, artesãos e guerreiros emergem como corporações reconhecíveis, e escribas desenvolvem sistemas notacionais que registram entradas e saídas, acordos e dívidas. A própria prática da troca é catalisada pela progressiva padronização de medidas e pelo advento de instrumentos monetários. A espacialidade acompanha esse salto institucional: surgem recintos cerimoniais, depósitos, paliçadas e, em certos sítios, muralhas com torres. O traço comum é a estabilização das centralidades — lugares onde autoridade e sacralidade se superpõem — e a consequente diferenciação do entorno rural, que passa a gravitar em torno de núcleos mais permanentes e articulados. Esse conjunto de processos anuncia o urbano antes do nomear, ancorando a transição em fundamentos materiais e simbólicos duráveis :contentReference[oaicite:3]{index=3}.

A difusão da metalurgia acentua a clivagem entre agrupamentos com acesso a armas e ferramentas superiores e populações ainda dependentes de instrumentos líticos. Em muitos contextos, o domínio do cobre, do bronze e, posteriormente, do ferro desloca o equilíbrio de poder, viabilizando a imposição de tributos, o controle de rotas e a proteção de áreas produtivas por meio de fortificações. A literatura didática resume essa hipótese ao afirmar que povos pastoris metalurgistas teriam dominado agricultores, desencadeando a construção de cidades em sítios elevados e defendidos — uma inferência compatível com a presença de muralhas e acrópoles em numerosos sítios da transição. Em paralelo, aperfeiçoam-se práticas de agrimensura, com marcos territoriais, sistemas de medida e esboços cartográficos que permitem registrar glebas, canais e recintos. Dessa confluência entre técnica, excedente e autoridade desponta uma gramática espacial que prepara a forma urbana clássica: centralidades político-religiosas, bairros artesanais, espaços de troca e perímetros defensivos :contentReference[oaicite:4]{index=4}.

A cidade na Antiguidade

Na Antiguidade, os vales fluviais funcionam como matrizes de urbanização: Mesopotâmia (Tigre e Eufrates), Egito (Nilo), Vale do Indo (Indus) e China (Huang He e Yangtzé) articulam agricultura irrigada, administração centralizada e monumentalidade religiosa. Cidades tornam-se capitais político-religiosas e nós de comércio de longa distância, onde o excedente agrícola sustenta corpos administrativos, exércitos e corporações artesanais. O rio é, simultaneamente, infraestrutura de transporte, eixo de irrigação e símbolo ordenador do território; ao longo dele, canais, diques e bacias de retenção sistematizam a produção e protegem contra cheias. A escrita cuneiforme e hieroglífica torna-se tecnologia de governo; selos, tábuas e papiros mediam a contabilidade do tributo, a distribuição de trabalho e a memória legal. Na arquitetura, templos, palácios e armazéns definem centralidades hieráticas; na engenharia, aquedutos incipientes, sistemas de drenagem e traçados ortogonais em certos sítios anunciam princípios de desenho que se consolidarão adiante. A cidade antiga, assim, não é mero adensamento, mas um aparato institucional que coordena território, excedente e legitimidade :contentReference[oaicite:5]{index=5}.

Na Mesopotâmia, centros como Uruk, Ur, Nippur e Babilônia combinam muralhas, zigurates e bairros artesanais vinculados a templos-palácio, com uso extensivo da argila em alvenaria e documentação contábil. O controle cadastral da terra irrigada evidencia uma racionalidade territorial que associa astronomia, calendário e fiscalidade. No Egito, cidades como Mênfis e Tebas articulam eixo Nilo-deserto: o nilômetro metrifica cheias e organiza plantios; a agrimensura e a geometria alcançam sofisticação com as obras funerárias e templárias, ancorando o traçado urbano em princípios cosmológicos. No Vale do Indo, Harappa e Mohenjo-Daro exibem plano ortogonal, padronização de tijolos e sistemas sanitários com banhos públicos e drenagem — um patamar notável de urbanidade hídrica. Na China, malhas urbanas muradas como Anyang evidenciam simetria axial e hierarquia espacial, enquanto tecnologias de orientação (bússola, gnomon) informam a implantação de cidades, palácios e necópoles. Esse mosaico demonstra que a Antiguidade elaborou respostas urbanas diversas a condicionantes ecológicos e cosmologias distintas, sem perder a família de semelhanças que reconhecemos como cidade :contentReference[oaicite:6]{index=6}.

A Grécia introduz a pólis como forma política e morfológica particular, em que a ágora — espaço de mercado e deliberação — torna-se o coração cívico. O relevo compartimentado favorece cidades-Estado autônomas e uma cultura urbana de praças, templos e teatros, com malhas frequentemente orgânicas, mas também, a partir de Hipódamos de Mileto, experiências de traçado ortogonal associado a hierarquização viária e zonificação funcional embrionária. O ideal de escala humana — filósofos como Aristóteles advogam limites numéricos para a boa cidade — convive com dicotomias estruturais (livres e escravos, ricos e pobres) e com a separação entre acrópole (poder sagrado/político) e ágora (poder econômico/cívico). Da Grécia, a cidade herda um repertório formal (praças, eixos, proporções) e, sobretudo, a ideia de espaço público como arena de visibilidade e disputa, no qual a arquitetura compõe cenários para a vida coletiva e a lei se encarna em pedras e inscrições :contentReference[oaicite:7]{index=7}.

Em Roma, a urbanidade alcança escala imperial. No ápice, a capital se aproxima de um milhão de habitantes, servida por aquedutos monumentais, pavimentação extensa, esgotos dinâmicos, termas e edifícios multifamiliares. O par cardo e decúmano organiza colônias e acampamentos (castrum), difundindo um padrão ortogonal ajustável que marcará fundações medievais e renascentistas. A agrimensura romana — das centuriações ao parcelamento colonial — sistematiza técnicas de medição e demarcação que integram produção, fiscalidade e defesa. A cidade manifesta uma contradição persistente: magnificência monumental e serviços públicos avançados coexistem com desigualdades agudas, insalubridade em ínsulas superlotadas e escravidão como base produtiva. O colapso de 476 d.C. não extingue a herança urbana; antes, dispersa saberes técnicos e repertórios morfológicos que, reapropriados, moldarão o Ocidente medieval e moderno. Roma demonstra que a cidade pode ser simultaneamente máquina administrativa, palco simbólico e campo de conflito, síntese tensa — e criativa — de complexidade social :contentReference[oaicite:8]{index=8}.

Conclusão

A trajetória que vai das aldeias neolíticas às metrópoles da Antiguidade evidencia que a cidade é produto de acúmulos técnicos (irrigação, drenagem, construção, mensuração), institucionais (escrita, administração, exército, culto) e simbólicos (cosmologias, rituais, monumentos) que estabilizam centralidades e ampliam escalas de cooperação. Se a Pré-História lança os alicerces — sedentarização, excedente, divisão do trabalho, protodefesas —, é na Antiguidade que a forma urbana se torna plenamente reconhecível e diversa, ajustando-se a ecologias fluviais e a matrizes culturais específicas: Mesopotâmia e seus zigurates-palácio; Egito e a agrimensura do Nilo; Vale do Indo e sua urbanidade hidráulica; China e a ordenação cosmográfica; Grécia e a ágora cívica; Roma e a engenharia territorial. Nessa diversidade, persiste um núcleo: a cidade como dispositivo de coordenação de recursos e conflitos, como artefato que organiza tempos (calendário, escritura) e espaços (malhas, perímetros, eixos), e como espelho das desigualdades e aspirações humanas. Compreender essa gênese não é exercício erudito: é condição para pensar criticamente os dilemas contemporâneos — sustentabilidade, justiça espacial, governança metropolitana — que, sob novas tecnologias e escalas, reenencenam velhos problemas de provisão, coesão e legitimidade :contentReference[oaicite:9]{index=9}.

Referências

  1. GOMES, D. S. A Cidade na Pré-História e na Antiguidade. Aula da disciplina Parcelamento Territorial. UFPI, 2025. :contentReference[oaicite:0]{index=0}
  2. MUMFORD, L. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
  3. BENEVOLO, L. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1993.
  4. CHILDE, V. G. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
  5. KOSTOF, S. The City Shaped: Urban Patterns and Meanings Through History. London: Thames & Hudson, 1991.
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