O estudo do uso do solo urbano é um dos eixos centrais da compreensão da cidade contemporânea e de sua evolução histórica. Entende-se por uso do solo urbano a forma como o espaço da cidade é destinado a funções específicas, como habitação, comércio, indústria, lazer, áreas institucionais e serviços públicos. Essas funções não se distribuem de forma aleatória, mas resultam de processos sociais, econômicos e políticos que organizam a ocupação do espaço ao longo do tempo. A forma como os usos se arranjam influencia diretamente a mobilidade, a acessibilidade e a qualidade de vida urbana, criando padrões de centralidade e periferização. A análise do uso do solo permite identificar desigualdades, uma vez que certos grupos sociais possuem maior capacidade de ocupar áreas bem servidas por infraestrutura, enquanto outros são relegados a regiões carentes. Assim, compreender os usos do solo urbano é fundamental para propor políticas de planejamento e gestão territorial que busquem equidade, eficiência e sustentabilidade. Esse estudo constitui a base para examinar as formas espaciais urbanas, que tratam não apenas da função de cada espaço, mas também da sua distribuição e organização estrutural dentro da malha urbana.
As formas espaciais urbanas dizem respeito ao arranjo físico e funcional das cidades, resultantes da interação entre fatores naturais, econômicos, sociais, tecnológicos e culturais. Historicamente, diferentes sociedades estruturaram suas cidades de modos distintos: na Antiguidade, predominavam os traçados ortogonais, como em Mileto; já na Idade Média, eram comuns os traçados irregulares, adaptados às condições topográficas. No contexto moderno, com o avanço do urbanismo e das teorias sociais, surgiram tentativas de compreender cientificamente os padrões espaciais das cidades. Nesse sentido, as formas espaciais urbanas passaram a ser estudadas como sistemas, em que cada parte se conecta à outra e contribui para a dinâmica urbana como um todo. A análise dessas formas é importante porque permite identificar tanto processos espontâneos de crescimento urbano quanto aqueles planejados por políticas públicas. Além disso, ao analisar as formas espaciais, é possível compreender o impacto das transformações tecnológicas, como o advento do automóvel e das rodovias, que reconfiguraram completamente a distribuição dos usos urbanos. A transição da cidade monocêntrica para a policêntrica é um reflexo dessas mudanças. Esse raciocínio conduz naturalmente ao conceito de ecologia, cuja aplicação ao espaço urbano ajudou a consolidar os primeiros modelos teóricos para explicar o crescimento das cidades modernas.
A ecologia, em sua origem, é um ramo da biologia que estuda as relações entre organismos e o ambiente em que vivem. O termo foi cunhado por Ernst Haeckel em 1866 e desde então se consolidou como campo científico para compreender interações, fluxos e equilíbrios naturais. Com o desenvolvimento das ciências sociais, essa noção foi apropriada para o estudo das cidades, dando origem à chamada ecologia urbana. Essa perspectiva emergiu fortemente no início do século XX, sobretudo com a Escola de Chicago, que interpretava a cidade como um ecossistema social. Assim como em um ecossistema natural, em que espécies competem por recursos e espaços, os grupos sociais urbanos competiriam por áreas mais vantajosas, próximas a empregos, serviços e infraestrutura. A ecologia urbana permitiu que se observassem padrões de ocupação e expansão que não eram aleatórios, mas resultavam de lógicas sociais e econômicas análogas a processos biológicos. Essa abordagem teve impacto significativo, pois forneceu aos urbanistas e sociólogos ferramentas para compreender a estrutura das cidades industriais modernas. A aplicação da ecologia ao espaço urbano não foi apenas uma metáfora, mas uma tentativa de criar modelos explicativos com pretensão científica. Essa concepção foi a base para teorias que buscavam explicar como o solo urbano era usado e como as formas espaciais urbanas se constituíam ao longo do tempo.
A transposição da ecologia para o campo urbano não ocorreu de maneira simplista, mas resultou de um esforço de pesquisadores em compreender as cidades como sistemas complexos. A ecologia urbana, ao interpretar a cidade como um organismo vivo, permitiu investigar como diferentes usos do solo coexistem, se chocam e se reconfiguram. Essa perspectiva ficou marcada principalmente pelos estudos de Robert Park, Ernest Burgess e Roderick McKenzie, que investigaram a cidade de Chicago entre 1910 e 1930. Eles observaram que o crescimento urbano seguia padrões estruturados, em que zonas residenciais, comerciais e industriais se organizavam segundo lógicas de competição e diferenciação espacial. Essa leitura inovadora inaugurou os primeiros modelos de crescimento urbano, como o modelo concêntrico de Burgess. Entretanto, a ecologia urbana foi também criticada por seu viés determinista, já que muitas vezes interpretava os fenômenos sociais como meros reflexos de “leis naturais”. Ainda assim, foi fundamental para estabelecer uma ponte entre as ciências naturais e sociais na análise das cidades. Essa visão ecológica introduziu conceitos como equilíbrio, competição e adaptação, que passaram a ser aplicados ao planejamento urbano. Essa discussão abre caminho para o modelo ecológico de crescimento urbano, que procurou sintetizar essas observações em esquemas explicativos mais amplos.
O modelo ecológico de crescimento urbano surge a partir das observações da Escola de Chicago e busca explicar como as cidades se expandem e se transformam ao longo do tempo. Inspirado nas dinâmicas ecológicas, o modelo propõe que os espaços urbanos estão em constante disputa, sendo ocupados conforme diferentes grupos sociais conseguem acesso ou são expulsos para áreas mais periféricas. Essa ideia de competição é central: áreas centrais mais valorizadas atraem atividades de maior rendimento, empurrando atividades de menor poder aquisitivo para regiões marginais. O modelo também pressupõe que o crescimento urbano ocorre em ondas, com processos de deterioração e renovação constantes. Uma zona pode, em um momento, ser industrial, e em outro se transformar em espaço residencial ou comercial, dependendo da dinâmica econômica e social. Esse tipo de raciocínio é visível em cidades como São Paulo, em que antigos bairros industriais foram convertidos em polos de serviços e cultura, como na região da Barra Funda. O modelo ecológico de crescimento urbano, portanto, não apenas descreve uma lógica espacial, mas oferece uma visão histórica, em que a cidade está sempre em movimento.
Ainda que relevante, o modelo ecológico de crescimento urbano possui limitações e críticas que precisam ser consideradas. Sua principal contribuição foi inaugurar uma abordagem analítica que interpretava a cidade como sistema dinâmico, mas ao mesmo tempo reduzia processos sociais complexos a analogias biológicas. Essa redução ignorava, por exemplo, os efeitos das políticas públicas, da legislação urbanística e das ações estatais na configuração do espaço urbano. A segregação socioespacial, tão evidente nas cidades latino-americanas, não pode ser explicada apenas por uma “competição natural”, mas envolve processos de exclusão social e política. Além disso, o modelo supunha uma linearidade no crescimento das cidades, algo cada vez menos verificável diante da complexidade das metrópoles atuais, que crescem de forma fragmentada e desigual. Ainda assim, o modelo serviu como base para as teorias mais específicas, como a de Burgess, Hoyt e Harris & Ullman, que buscaram refinar as explicações sobre as formas espaciais urbanas. Assim, a ecologia urbana e o modelo ecológico podem ser entendidos como a primeira etapa na tentativa de formalizar o estudo dos usos do solo urbano. É a partir dessa base que emergem os modelos explicativos subsequentes, mais detalhados, como a Teoria das Zonas Concêntricas.
A Teoria das Zonas Concêntricas, proposta por Ernest Burgess em 1925, foi uma das primeiras formulações concretas derivadas da ecologia urbana. Burgess observou a cidade de Chicago e identificou que seu crescimento se organizava em círculos concêntricos, semelhantes às camadas de uma cebola, partindo do centro em direção à periferia. O primeiro círculo correspondia ao CBD (Central Business District), núcleo de comércio e negócios. Ao redor dele, formava-se uma zona de transição, caracterizada por indústrias leves, cortiços e habitações precárias. Seguiam-se a zona da classe trabalhadora, a zona residencial de classe média e, por fim, os subúrbios, que concentravam a população de maior renda. Esse modelo buscava explicar tanto a estrutura espacial da cidade quanto sua expansão temporal, já que novas camadas se formavam à medida que o centro se renovava e pressionava os usos para fora. O modelo dos círculos concêntricos foi influente porque apresentava uma lógica clara e visualmente simples, além de se apoiar em observações empíricas. Foi aplicado em diversas cidades americanas do início do século XX, mas logo recebeu críticas por sua generalização excessiva e pela incapacidade de explicar cidades mais complexas e culturalmente diversas, como as latino-americanas.
Apesar das críticas, a Teoria das Zonas Concêntricas foi essencial para inaugurar a tradição de modelos espaciais no urbanismo. Ela permitiu relacionar a organização do solo urbano com processos sociais, como segregação e mobilidade residencial. No entanto, ao assumir que o crescimento se dava em círculos ordenados, a teoria desconsiderava fatores como relevo, barreiras físicas e infraestrutura viária, que alteram significativamente a expansão urbana. Outro problema foi sua limitação a cidades industriais típicas dos Estados Unidos da década de 1920, não contemplando realidades diferentes, como as cidades coloniais da América Latina. Ainda assim, a teoria serviu como base para estudos posteriores, especialmente o de Homer Hoyt, que reformulou a ideia de Burgess ao propor que a cidade crescia em setores radiais e não em círculos. Essa transição marca uma evolução nos estudos da ecologia urbana, pois reconhece a importância das vias de transporte e dos eixos de crescimento, algo mais compatível com cidades modernas em expansão. Desse modo, a teoria de Burgess foi uma contribuição seminal, cuja importância histórica é indiscutível, mesmo que seu poder explicativo esteja hoje bastante limitado.
A Teoria dos Setores, formulada por Homer Hoyt em 1939, surgiu como alternativa e aprimoramento da teoria de Burgess. Hoyt percebeu que o crescimento urbano não se dava em círculos uniformes, mas em setores radiais, que se expandiam a partir do centro ao longo de eixos de transporte, como avenidas, ferrovias e rios. Nesse modelo, áreas residenciais de alta renda tendiam a se localizar em setores específicos e a se expandir de forma contínua, criando padrões espaciais diferentes daqueles descritos por Burgess. Os setores de baixa renda, por sua vez, também ocupavam áreas contínuas, geralmente em direções opostas aos setores de maior status. Esse modelo era mais flexível e condizente com a observação empírica de várias cidades, especialmente no contexto do avanço da infraestrutura de transporte no século XX. Hoyt destacou ainda que a localização das áreas residenciais não era aleatória, mas resultava da interação entre fatores sociais, econômicos e ambientais. Assim, sua teoria representou um avanço importante, aproximando a ecologia urbana das práticas efetivas de planejamento. No entanto, assim como a teoria de Burgess, apresentava limitações, sobretudo ao desconsiderar a formação de novos centros urbanos e a crescente complexidade metropolitana.
A Teoria dos Setores contribuiu para ampliar a compreensão do crescimento urbano ao valorizar a importância das vias de transporte e da continuidade espacial dos bairros. Um exemplo é o caso do Rio de Janeiro, cujo crescimento se deu de maneira setorial ao longo da orla, expandindo-se de Copacabana até a Barra da Tijuca. Essa expansão setorial foi possível pela presença de infraestrutura viária e pelo valor agregado das áreas litorâneas. No entanto, a teoria também foi alvo de críticas, principalmente por supor que os setores se mantêm estáveis ao longo do tempo, quando na realidade há transformações constantes resultantes de processos econômicos, imobiliários e políticos. Além disso, o modelo se mostrou insuficiente para explicar cidades policêntricas, que passaram a se tornar cada vez mais comuns após a Segunda Guerra Mundial. Foi nesse contexto que surgiu a Teoria dos Núcleos Múltiplos, elaborada por Harris e Ullman em 1945, que buscava compreender a formação de cidades mais complexas, marcadas pela presença de vários centros de atividade e não apenas de um núcleo principal ou de setores organizados radialmente. Essa evolução reflete a própria transformação urbana global e a necessidade de modelos mais abrangentes.
A Teoria dos Núcleos Múltiplos, proposta por Harris e Ullman em 1945, representou uma ruptura com os modelos anteriores ao assumir que a cidade não se organiza em torno de um único centro, mas de vários polos de atração. Esses polos surgem em função da especialização de atividades e das demandas da população, criando uma estrutura policêntrica. Assim, enquanto o centro principal continua concentrando atividades financeiras e administrativas, outros núcleos se formam para abrigar indústrias, comércio, universidades, áreas residenciais de alto padrão ou equipamentos culturais. Essa abordagem era mais adequada para explicar as grandes metrópoles americanas do pós-guerra, como Los Angeles, que não se estruturavam de maneira concêntrica nem setorial, mas por meio de múltiplas centralidades. A teoria também ajudava a compreender a descentralização urbana, fenômeno típico das cidades modernas, em que os subcentros adquirem autonomia e passam a competir entre si. No entanto, sua principal limitação é que, ao enfatizar os núcleos múltiplos, acaba por simplificar as relações sociais e políticas que explicam a formação desses centros. Ainda assim, foi um avanço em relação aos modelos anteriores, pois reconhecia a diversidade e a fragmentação crescentes da estrutura urbana.
A Teoria dos Núcleos Múltiplos se mostrou particularmente útil para explicar cidades em países industrializados, mas também pode ser observada em países em desenvolvimento, embora de forma adaptada. No Brasil, por exemplo, São Paulo se configura como uma metrópole de múltiplos núcleos, em que subcentros como Paulista, Berrini, Barra Funda e Santo Amaro cumprem funções diferenciadas dentro da dinâmica urbana. Esse padrão se reproduz em outras grandes cidades brasileiras, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, que possuem áreas descentralizadas de comércio, serviços e lazer. A teoria também tem afinidade com os debates atuais sobre policentrismo e cidades-região, em que diferentes municípios interconectados funcionam como polos de uma mesma rede urbana. Apesar de suas limitações, a contribuição de Harris e Ullman foi reconhecer a crescente complexidade das cidades modernas e propor um modelo que refletisse melhor essa realidade. Ao contrário dos modelos de Burgess e Hoyt, que buscavam explicar padrões relativamente simples, a teoria dos núcleos múltiplos se aproxima mais daquilo que observamos nas cidades globais contemporâneas. Isso demonstra a evolução das teorias urbanas e prepara o terreno para abordagens mais sofisticadas, voltadas ao urbanismo sustentável e à governança metropolitana.
As três teorias clássicas — Zonas Concêntricas de Burgess, Setores de Hoyt e Núcleos Múltiplos de Harris & Ullman — representam estágios fundamentais da tentativa de compreender os usos do solo urbano e as formas espaciais urbanas no século XX. Embora cada uma possua limitações, juntas elas formam um quadro evolutivo que reflete a crescente complexidade das cidades modernas. Todas partem da ideia da cidade como um sistema em transformação, onde diferentes grupos sociais e funções competem por espaço. Entretanto, enquanto Burgess ofereceu uma explicação simples e visualmente clara, Hoyt introduziu a relevância da infraestrutura e dos eixos viários, e Harris & Ullman captaram a descentralização das metrópoles. Hoje, tais modelos são mais valiosos como ferramentas de ensino e análise histórica do que como representações exatas da realidade urbana contemporânea. Isso não diminui sua importância, pois ao compreender seus limites e contribuições, conseguimos avançar em teorias mais adequadas ao contexto atual, marcado por globalização, segregação socioespacial e cidades em rede. Assim, o legado dessas teorias está em nos lembrar que as formas urbanas são construções sociais, sujeitas a transformações contínuas, e que o planejamento urbano deve estar atento a essas dinâmicas para promover cidades mais inclusivas e sustentáveis.
Referências
BURGESS, Ernest. The Growth of the City: An Introduction to a Research Project. Chicago: University of Chicago Press, 1925.
HOYT, Homer. The Structure and Growth of Residential Neighborhoods in American Cities. Washington: Federal Housing Administration, 1939.
HARRIS, Chauncy; ULLMAN, Edward. The Nature of Cities. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 1945.
CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 2004.
SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998.
As formas espaciais urbanas dizem respeito ao arranjo físico e funcional das cidades, resultantes da interação entre fatores naturais, econômicos, sociais, tecnológicos e culturais. Historicamente, diferentes sociedades estruturaram suas cidades de modos distintos: na Antiguidade, predominavam os traçados ortogonais, como em Mileto; já na Idade Média, eram comuns os traçados irregulares, adaptados às condições topográficas. No contexto moderno, com o avanço do urbanismo e das teorias sociais, surgiram tentativas de compreender cientificamente os padrões espaciais das cidades. Nesse sentido, as formas espaciais urbanas passaram a ser estudadas como sistemas, em que cada parte se conecta à outra e contribui para a dinâmica urbana como um todo. A análise dessas formas é importante porque permite identificar tanto processos espontâneos de crescimento urbano quanto aqueles planejados por políticas públicas. Além disso, ao analisar as formas espaciais, é possível compreender o impacto das transformações tecnológicas, como o advento do automóvel e das rodovias, que reconfiguraram completamente a distribuição dos usos urbanos. A transição da cidade monocêntrica para a policêntrica é um reflexo dessas mudanças. Esse raciocínio conduz naturalmente ao conceito de ecologia, cuja aplicação ao espaço urbano ajudou a consolidar os primeiros modelos teóricos para explicar o crescimento das cidades modernas.
A ecologia, em sua origem, é um ramo da biologia que estuda as relações entre organismos e o ambiente em que vivem. O termo foi cunhado por Ernst Haeckel em 1866 e desde então se consolidou como campo científico para compreender interações, fluxos e equilíbrios naturais. Com o desenvolvimento das ciências sociais, essa noção foi apropriada para o estudo das cidades, dando origem à chamada ecologia urbana. Essa perspectiva emergiu fortemente no início do século XX, sobretudo com a Escola de Chicago, que interpretava a cidade como um ecossistema social. Assim como em um ecossistema natural, em que espécies competem por recursos e espaços, os grupos sociais urbanos competiriam por áreas mais vantajosas, próximas a empregos, serviços e infraestrutura. A ecologia urbana permitiu que se observassem padrões de ocupação e expansão que não eram aleatórios, mas resultavam de lógicas sociais e econômicas análogas a processos biológicos. Essa abordagem teve impacto significativo, pois forneceu aos urbanistas e sociólogos ferramentas para compreender a estrutura das cidades industriais modernas. A aplicação da ecologia ao espaço urbano não foi apenas uma metáfora, mas uma tentativa de criar modelos explicativos com pretensão científica. Essa concepção foi a base para teorias que buscavam explicar como o solo urbano era usado e como as formas espaciais urbanas se constituíam ao longo do tempo.
A transposição da ecologia para o campo urbano não ocorreu de maneira simplista, mas resultou de um esforço de pesquisadores em compreender as cidades como sistemas complexos. A ecologia urbana, ao interpretar a cidade como um organismo vivo, permitiu investigar como diferentes usos do solo coexistem, se chocam e se reconfiguram. Essa perspectiva ficou marcada principalmente pelos estudos de Robert Park, Ernest Burgess e Roderick McKenzie, que investigaram a cidade de Chicago entre 1910 e 1930. Eles observaram que o crescimento urbano seguia padrões estruturados, em que zonas residenciais, comerciais e industriais se organizavam segundo lógicas de competição e diferenciação espacial. Essa leitura inovadora inaugurou os primeiros modelos de crescimento urbano, como o modelo concêntrico de Burgess. Entretanto, a ecologia urbana foi também criticada por seu viés determinista, já que muitas vezes interpretava os fenômenos sociais como meros reflexos de “leis naturais”. Ainda assim, foi fundamental para estabelecer uma ponte entre as ciências naturais e sociais na análise das cidades. Essa visão ecológica introduziu conceitos como equilíbrio, competição e adaptação, que passaram a ser aplicados ao planejamento urbano. Essa discussão abre caminho para o modelo ecológico de crescimento urbano, que procurou sintetizar essas observações em esquemas explicativos mais amplos.
O modelo ecológico de crescimento urbano surge a partir das observações da Escola de Chicago e busca explicar como as cidades se expandem e se transformam ao longo do tempo. Inspirado nas dinâmicas ecológicas, o modelo propõe que os espaços urbanos estão em constante disputa, sendo ocupados conforme diferentes grupos sociais conseguem acesso ou são expulsos para áreas mais periféricas. Essa ideia de competição é central: áreas centrais mais valorizadas atraem atividades de maior rendimento, empurrando atividades de menor poder aquisitivo para regiões marginais. O modelo também pressupõe que o crescimento urbano ocorre em ondas, com processos de deterioração e renovação constantes. Uma zona pode, em um momento, ser industrial, e em outro se transformar em espaço residencial ou comercial, dependendo da dinâmica econômica e social. Esse tipo de raciocínio é visível em cidades como São Paulo, em que antigos bairros industriais foram convertidos em polos de serviços e cultura, como na região da Barra Funda. O modelo ecológico de crescimento urbano, portanto, não apenas descreve uma lógica espacial, mas oferece uma visão histórica, em que a cidade está sempre em movimento.
Ainda que relevante, o modelo ecológico de crescimento urbano possui limitações e críticas que precisam ser consideradas. Sua principal contribuição foi inaugurar uma abordagem analítica que interpretava a cidade como sistema dinâmico, mas ao mesmo tempo reduzia processos sociais complexos a analogias biológicas. Essa redução ignorava, por exemplo, os efeitos das políticas públicas, da legislação urbanística e das ações estatais na configuração do espaço urbano. A segregação socioespacial, tão evidente nas cidades latino-americanas, não pode ser explicada apenas por uma “competição natural”, mas envolve processos de exclusão social e política. Além disso, o modelo supunha uma linearidade no crescimento das cidades, algo cada vez menos verificável diante da complexidade das metrópoles atuais, que crescem de forma fragmentada e desigual. Ainda assim, o modelo serviu como base para as teorias mais específicas, como a de Burgess, Hoyt e Harris & Ullman, que buscaram refinar as explicações sobre as formas espaciais urbanas. Assim, a ecologia urbana e o modelo ecológico podem ser entendidos como a primeira etapa na tentativa de formalizar o estudo dos usos do solo urbano. É a partir dessa base que emergem os modelos explicativos subsequentes, mais detalhados, como a Teoria das Zonas Concêntricas.
A Teoria das Zonas Concêntricas, proposta por Ernest Burgess em 1925, foi uma das primeiras formulações concretas derivadas da ecologia urbana. Burgess observou a cidade de Chicago e identificou que seu crescimento se organizava em círculos concêntricos, semelhantes às camadas de uma cebola, partindo do centro em direção à periferia. O primeiro círculo correspondia ao CBD (Central Business District), núcleo de comércio e negócios. Ao redor dele, formava-se uma zona de transição, caracterizada por indústrias leves, cortiços e habitações precárias. Seguiam-se a zona da classe trabalhadora, a zona residencial de classe média e, por fim, os subúrbios, que concentravam a população de maior renda. Esse modelo buscava explicar tanto a estrutura espacial da cidade quanto sua expansão temporal, já que novas camadas se formavam à medida que o centro se renovava e pressionava os usos para fora. O modelo dos círculos concêntricos foi influente porque apresentava uma lógica clara e visualmente simples, além de se apoiar em observações empíricas. Foi aplicado em diversas cidades americanas do início do século XX, mas logo recebeu críticas por sua generalização excessiva e pela incapacidade de explicar cidades mais complexas e culturalmente diversas, como as latino-americanas.
Apesar das críticas, a Teoria das Zonas Concêntricas foi essencial para inaugurar a tradição de modelos espaciais no urbanismo. Ela permitiu relacionar a organização do solo urbano com processos sociais, como segregação e mobilidade residencial. No entanto, ao assumir que o crescimento se dava em círculos ordenados, a teoria desconsiderava fatores como relevo, barreiras físicas e infraestrutura viária, que alteram significativamente a expansão urbana. Outro problema foi sua limitação a cidades industriais típicas dos Estados Unidos da década de 1920, não contemplando realidades diferentes, como as cidades coloniais da América Latina. Ainda assim, a teoria serviu como base para estudos posteriores, especialmente o de Homer Hoyt, que reformulou a ideia de Burgess ao propor que a cidade crescia em setores radiais e não em círculos. Essa transição marca uma evolução nos estudos da ecologia urbana, pois reconhece a importância das vias de transporte e dos eixos de crescimento, algo mais compatível com cidades modernas em expansão. Desse modo, a teoria de Burgess foi uma contribuição seminal, cuja importância histórica é indiscutível, mesmo que seu poder explicativo esteja hoje bastante limitado.
A Teoria dos Setores, formulada por Homer Hoyt em 1939, surgiu como alternativa e aprimoramento da teoria de Burgess. Hoyt percebeu que o crescimento urbano não se dava em círculos uniformes, mas em setores radiais, que se expandiam a partir do centro ao longo de eixos de transporte, como avenidas, ferrovias e rios. Nesse modelo, áreas residenciais de alta renda tendiam a se localizar em setores específicos e a se expandir de forma contínua, criando padrões espaciais diferentes daqueles descritos por Burgess. Os setores de baixa renda, por sua vez, também ocupavam áreas contínuas, geralmente em direções opostas aos setores de maior status. Esse modelo era mais flexível e condizente com a observação empírica de várias cidades, especialmente no contexto do avanço da infraestrutura de transporte no século XX. Hoyt destacou ainda que a localização das áreas residenciais não era aleatória, mas resultava da interação entre fatores sociais, econômicos e ambientais. Assim, sua teoria representou um avanço importante, aproximando a ecologia urbana das práticas efetivas de planejamento. No entanto, assim como a teoria de Burgess, apresentava limitações, sobretudo ao desconsiderar a formação de novos centros urbanos e a crescente complexidade metropolitana.
A Teoria dos Setores contribuiu para ampliar a compreensão do crescimento urbano ao valorizar a importância das vias de transporte e da continuidade espacial dos bairros. Um exemplo é o caso do Rio de Janeiro, cujo crescimento se deu de maneira setorial ao longo da orla, expandindo-se de Copacabana até a Barra da Tijuca. Essa expansão setorial foi possível pela presença de infraestrutura viária e pelo valor agregado das áreas litorâneas. No entanto, a teoria também foi alvo de críticas, principalmente por supor que os setores se mantêm estáveis ao longo do tempo, quando na realidade há transformações constantes resultantes de processos econômicos, imobiliários e políticos. Além disso, o modelo se mostrou insuficiente para explicar cidades policêntricas, que passaram a se tornar cada vez mais comuns após a Segunda Guerra Mundial. Foi nesse contexto que surgiu a Teoria dos Núcleos Múltiplos, elaborada por Harris e Ullman em 1945, que buscava compreender a formação de cidades mais complexas, marcadas pela presença de vários centros de atividade e não apenas de um núcleo principal ou de setores organizados radialmente. Essa evolução reflete a própria transformação urbana global e a necessidade de modelos mais abrangentes.
A Teoria dos Núcleos Múltiplos, proposta por Harris e Ullman em 1945, representou uma ruptura com os modelos anteriores ao assumir que a cidade não se organiza em torno de um único centro, mas de vários polos de atração. Esses polos surgem em função da especialização de atividades e das demandas da população, criando uma estrutura policêntrica. Assim, enquanto o centro principal continua concentrando atividades financeiras e administrativas, outros núcleos se formam para abrigar indústrias, comércio, universidades, áreas residenciais de alto padrão ou equipamentos culturais. Essa abordagem era mais adequada para explicar as grandes metrópoles americanas do pós-guerra, como Los Angeles, que não se estruturavam de maneira concêntrica nem setorial, mas por meio de múltiplas centralidades. A teoria também ajudava a compreender a descentralização urbana, fenômeno típico das cidades modernas, em que os subcentros adquirem autonomia e passam a competir entre si. No entanto, sua principal limitação é que, ao enfatizar os núcleos múltiplos, acaba por simplificar as relações sociais e políticas que explicam a formação desses centros. Ainda assim, foi um avanço em relação aos modelos anteriores, pois reconhecia a diversidade e a fragmentação crescentes da estrutura urbana.
A Teoria dos Núcleos Múltiplos se mostrou particularmente útil para explicar cidades em países industrializados, mas também pode ser observada em países em desenvolvimento, embora de forma adaptada. No Brasil, por exemplo, São Paulo se configura como uma metrópole de múltiplos núcleos, em que subcentros como Paulista, Berrini, Barra Funda e Santo Amaro cumprem funções diferenciadas dentro da dinâmica urbana. Esse padrão se reproduz em outras grandes cidades brasileiras, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, que possuem áreas descentralizadas de comércio, serviços e lazer. A teoria também tem afinidade com os debates atuais sobre policentrismo e cidades-região, em que diferentes municípios interconectados funcionam como polos de uma mesma rede urbana. Apesar de suas limitações, a contribuição de Harris e Ullman foi reconhecer a crescente complexidade das cidades modernas e propor um modelo que refletisse melhor essa realidade. Ao contrário dos modelos de Burgess e Hoyt, que buscavam explicar padrões relativamente simples, a teoria dos núcleos múltiplos se aproxima mais daquilo que observamos nas cidades globais contemporâneas. Isso demonstra a evolução das teorias urbanas e prepara o terreno para abordagens mais sofisticadas, voltadas ao urbanismo sustentável e à governança metropolitana.
As três teorias clássicas — Zonas Concêntricas de Burgess, Setores de Hoyt e Núcleos Múltiplos de Harris & Ullman — representam estágios fundamentais da tentativa de compreender os usos do solo urbano e as formas espaciais urbanas no século XX. Embora cada uma possua limitações, juntas elas formam um quadro evolutivo que reflete a crescente complexidade das cidades modernas. Todas partem da ideia da cidade como um sistema em transformação, onde diferentes grupos sociais e funções competem por espaço. Entretanto, enquanto Burgess ofereceu uma explicação simples e visualmente clara, Hoyt introduziu a relevância da infraestrutura e dos eixos viários, e Harris & Ullman captaram a descentralização das metrópoles. Hoje, tais modelos são mais valiosos como ferramentas de ensino e análise histórica do que como representações exatas da realidade urbana contemporânea. Isso não diminui sua importância, pois ao compreender seus limites e contribuições, conseguimos avançar em teorias mais adequadas ao contexto atual, marcado por globalização, segregação socioespacial e cidades em rede. Assim, o legado dessas teorias está em nos lembrar que as formas urbanas são construções sociais, sujeitas a transformações contínuas, e que o planejamento urbano deve estar atento a essas dinâmicas para promover cidades mais inclusivas e sustentáveis.
Referências
BURGESS, Ernest. The Growth of the City: An Introduction to a Research Project. Chicago: University of Chicago Press, 1925.
HOYT, Homer. The Structure and Growth of Residential Neighborhoods in American Cities. Washington: Federal Housing Administration, 1939.
HARRIS, Chauncy; ULLMAN, Edward. The Nature of Cities. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 1945.
CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 2004.
SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998.
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