quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Introdução a teoria do uso do solo urbano e as formas espaciais urbanas

O estudo do uso do solo urbano é um dos eixos centrais da compreensão da cidade contemporânea e de sua evolução histórica. Entende-se por uso do solo urbano a forma como o espaço da cidade é destinado a funções específicas, como habitação, comércio, indústria, lazer, áreas institucionais e serviços públicos. Essas funções não se distribuem de forma aleatória, mas resultam de processos sociais, econômicos e políticos que organizam a ocupação do espaço ao longo do tempo. A forma como os usos se arranjam influencia diretamente a mobilidade, a acessibilidade e a qualidade de vida urbana, criando padrões de centralidade e periferização. A análise do uso do solo permite identificar desigualdades, uma vez que certos grupos sociais possuem maior capacidade de ocupar áreas bem servidas por infraestrutura, enquanto outros são relegados a regiões carentes. Assim, compreender os usos do solo urbano é fundamental para propor políticas de planejamento e gestão territorial que busquem equidade, eficiência e sustentabilidade. Esse estudo constitui a base para examinar as formas espaciais urbanas, que tratam não apenas da função de cada espaço, mas também da sua distribuição e organização estrutural dentro da malha urbana.

As formas espaciais urbanas dizem respeito ao arranjo físico e funcional das cidades, resultantes da interação entre fatores naturais, econômicos, sociais, tecnológicos e culturais. Historicamente, diferentes sociedades estruturaram suas cidades de modos distintos: na Antiguidade, predominavam os traçados ortogonais, como em Mileto; já na Idade Média, eram comuns os traçados irregulares, adaptados às condições topográficas. No contexto moderno, com o avanço do urbanismo e das teorias sociais, surgiram tentativas de compreender cientificamente os padrões espaciais das cidades. Nesse sentido, as formas espaciais urbanas passaram a ser estudadas como sistemas, em que cada parte se conecta à outra e contribui para a dinâmica urbana como um todo. A análise dessas formas é importante porque permite identificar tanto processos espontâneos de crescimento urbano quanto aqueles planejados por políticas públicas. Além disso, ao analisar as formas espaciais, é possível compreender o impacto das transformações tecnológicas, como o advento do automóvel e das rodovias, que reconfiguraram completamente a distribuição dos usos urbanos. A transição da cidade monocêntrica para a policêntrica é um reflexo dessas mudanças. Esse raciocínio conduz naturalmente ao conceito de ecologia, cuja aplicação ao espaço urbano ajudou a consolidar os primeiros modelos teóricos para explicar o crescimento das cidades modernas.

A ecologia, em sua origem, é um ramo da biologia que estuda as relações entre organismos e o ambiente em que vivem. O termo foi cunhado por Ernst Haeckel em 1866 e desde então se consolidou como campo científico para compreender interações, fluxos e equilíbrios naturais. Com o desenvolvimento das ciências sociais, essa noção foi apropriada para o estudo das cidades, dando origem à chamada ecologia urbana. Essa perspectiva emergiu fortemente no início do século XX, sobretudo com a Escola de Chicago, que interpretava a cidade como um ecossistema social. Assim como em um ecossistema natural, em que espécies competem por recursos e espaços, os grupos sociais urbanos competiriam por áreas mais vantajosas, próximas a empregos, serviços e infraestrutura. A ecologia urbana permitiu que se observassem padrões de ocupação e expansão que não eram aleatórios, mas resultavam de lógicas sociais e econômicas análogas a processos biológicos. Essa abordagem teve impacto significativo, pois forneceu aos urbanistas e sociólogos ferramentas para compreender a estrutura das cidades industriais modernas. A aplicação da ecologia ao espaço urbano não foi apenas uma metáfora, mas uma tentativa de criar modelos explicativos com pretensão científica. Essa concepção foi a base para teorias que buscavam explicar como o solo urbano era usado e como as formas espaciais urbanas se constituíam ao longo do tempo.

A transposição da ecologia para o campo urbano não ocorreu de maneira simplista, mas resultou de um esforço de pesquisadores em compreender as cidades como sistemas complexos. A ecologia urbana, ao interpretar a cidade como um organismo vivo, permitiu investigar como diferentes usos do solo coexistem, se chocam e se reconfiguram. Essa perspectiva ficou marcada principalmente pelos estudos de Robert Park, Ernest Burgess e Roderick McKenzie, que investigaram a cidade de Chicago entre 1910 e 1930. Eles observaram que o crescimento urbano seguia padrões estruturados, em que zonas residenciais, comerciais e industriais se organizavam segundo lógicas de competição e diferenciação espacial. Essa leitura inovadora inaugurou os primeiros modelos de crescimento urbano, como o modelo concêntrico de Burgess. Entretanto, a ecologia urbana foi também criticada por seu viés determinista, já que muitas vezes interpretava os fenômenos sociais como meros reflexos de “leis naturais”. Ainda assim, foi fundamental para estabelecer uma ponte entre as ciências naturais e sociais na análise das cidades. Essa visão ecológica introduziu conceitos como equilíbrio, competição e adaptação, que passaram a ser aplicados ao planejamento urbano. Essa discussão abre caminho para o modelo ecológico de crescimento urbano, que procurou sintetizar essas observações em esquemas explicativos mais amplos.

O modelo ecológico de crescimento urbano surge a partir das observações da Escola de Chicago e busca explicar como as cidades se expandem e se transformam ao longo do tempo. Inspirado nas dinâmicas ecológicas, o modelo propõe que os espaços urbanos estão em constante disputa, sendo ocupados conforme diferentes grupos sociais conseguem acesso ou são expulsos para áreas mais periféricas. Essa ideia de competição é central: áreas centrais mais valorizadas atraem atividades de maior rendimento, empurrando atividades de menor poder aquisitivo para regiões marginais. O modelo também pressupõe que o crescimento urbano ocorre em ondas, com processos de deterioração e renovação constantes. Uma zona pode, em um momento, ser industrial, e em outro se transformar em espaço residencial ou comercial, dependendo da dinâmica econômica e social. Esse tipo de raciocínio é visível em cidades como São Paulo, em que antigos bairros industriais foram convertidos em polos de serviços e cultura, como na região da Barra Funda. O modelo ecológico de crescimento urbano, portanto, não apenas descreve uma lógica espacial, mas oferece uma visão histórica, em que a cidade está sempre em movimento.

Ainda que relevante, o modelo ecológico de crescimento urbano possui limitações e críticas que precisam ser consideradas. Sua principal contribuição foi inaugurar uma abordagem analítica que interpretava a cidade como sistema dinâmico, mas ao mesmo tempo reduzia processos sociais complexos a analogias biológicas. Essa redução ignorava, por exemplo, os efeitos das políticas públicas, da legislação urbanística e das ações estatais na configuração do espaço urbano. A segregação socioespacial, tão evidente nas cidades latino-americanas, não pode ser explicada apenas por uma “competição natural”, mas envolve processos de exclusão social e política. Além disso, o modelo supunha uma linearidade no crescimento das cidades, algo cada vez menos verificável diante da complexidade das metrópoles atuais, que crescem de forma fragmentada e desigual. Ainda assim, o modelo serviu como base para as teorias mais específicas, como a de Burgess, Hoyt e Harris & Ullman, que buscaram refinar as explicações sobre as formas espaciais urbanas. Assim, a ecologia urbana e o modelo ecológico podem ser entendidos como a primeira etapa na tentativa de formalizar o estudo dos usos do solo urbano. É a partir dessa base que emergem os modelos explicativos subsequentes, mais detalhados, como a Teoria das Zonas Concêntricas.

A Teoria das Zonas Concêntricas, proposta por Ernest Burgess em 1925, foi uma das primeiras formulações concretas derivadas da ecologia urbana. Burgess observou a cidade de Chicago e identificou que seu crescimento se organizava em círculos concêntricos, semelhantes às camadas de uma cebola, partindo do centro em direção à periferia. O primeiro círculo correspondia ao CBD (Central Business District), núcleo de comércio e negócios. Ao redor dele, formava-se uma zona de transição, caracterizada por indústrias leves, cortiços e habitações precárias. Seguiam-se a zona da classe trabalhadora, a zona residencial de classe média e, por fim, os subúrbios, que concentravam a população de maior renda. Esse modelo buscava explicar tanto a estrutura espacial da cidade quanto sua expansão temporal, já que novas camadas se formavam à medida que o centro se renovava e pressionava os usos para fora. O modelo dos círculos concêntricos foi influente porque apresentava uma lógica clara e visualmente simples, além de se apoiar em observações empíricas. Foi aplicado em diversas cidades americanas do início do século XX, mas logo recebeu críticas por sua generalização excessiva e pela incapacidade de explicar cidades mais complexas e culturalmente diversas, como as latino-americanas.

Apesar das críticas, a Teoria das Zonas Concêntricas foi essencial para inaugurar a tradição de modelos espaciais no urbanismo. Ela permitiu relacionar a organização do solo urbano com processos sociais, como segregação e mobilidade residencial. No entanto, ao assumir que o crescimento se dava em círculos ordenados, a teoria desconsiderava fatores como relevo, barreiras físicas e infraestrutura viária, que alteram significativamente a expansão urbana. Outro problema foi sua limitação a cidades industriais típicas dos Estados Unidos da década de 1920, não contemplando realidades diferentes, como as cidades coloniais da América Latina. Ainda assim, a teoria serviu como base para estudos posteriores, especialmente o de Homer Hoyt, que reformulou a ideia de Burgess ao propor que a cidade crescia em setores radiais e não em círculos. Essa transição marca uma evolução nos estudos da ecologia urbana, pois reconhece a importância das vias de transporte e dos eixos de crescimento, algo mais compatível com cidades modernas em expansão. Desse modo, a teoria de Burgess foi uma contribuição seminal, cuja importância histórica é indiscutível, mesmo que seu poder explicativo esteja hoje bastante limitado.

A Teoria dos Setores, formulada por Homer Hoyt em 1939, surgiu como alternativa e aprimoramento da teoria de Burgess. Hoyt percebeu que o crescimento urbano não se dava em círculos uniformes, mas em setores radiais, que se expandiam a partir do centro ao longo de eixos de transporte, como avenidas, ferrovias e rios. Nesse modelo, áreas residenciais de alta renda tendiam a se localizar em setores específicos e a se expandir de forma contínua, criando padrões espaciais diferentes daqueles descritos por Burgess. Os setores de baixa renda, por sua vez, também ocupavam áreas contínuas, geralmente em direções opostas aos setores de maior status. Esse modelo era mais flexível e condizente com a observação empírica de várias cidades, especialmente no contexto do avanço da infraestrutura de transporte no século XX. Hoyt destacou ainda que a localização das áreas residenciais não era aleatória, mas resultava da interação entre fatores sociais, econômicos e ambientais. Assim, sua teoria representou um avanço importante, aproximando a ecologia urbana das práticas efetivas de planejamento. No entanto, assim como a teoria de Burgess, apresentava limitações, sobretudo ao desconsiderar a formação de novos centros urbanos e a crescente complexidade metropolitana.

A Teoria dos Setores contribuiu para ampliar a compreensão do crescimento urbano ao valorizar a importância das vias de transporte e da continuidade espacial dos bairros. Um exemplo é o caso do Rio de Janeiro, cujo crescimento se deu de maneira setorial ao longo da orla, expandindo-se de Copacabana até a Barra da Tijuca. Essa expansão setorial foi possível pela presença de infraestrutura viária e pelo valor agregado das áreas litorâneas. No entanto, a teoria também foi alvo de críticas, principalmente por supor que os setores se mantêm estáveis ao longo do tempo, quando na realidade há transformações constantes resultantes de processos econômicos, imobiliários e políticos. Além disso, o modelo se mostrou insuficiente para explicar cidades policêntricas, que passaram a se tornar cada vez mais comuns após a Segunda Guerra Mundial. Foi nesse contexto que surgiu a Teoria dos Núcleos Múltiplos, elaborada por Harris e Ullman em 1945, que buscava compreender a formação de cidades mais complexas, marcadas pela presença de vários centros de atividade e não apenas de um núcleo principal ou de setores organizados radialmente. Essa evolução reflete a própria transformação urbana global e a necessidade de modelos mais abrangentes.

A Teoria dos Núcleos Múltiplos, proposta por Harris e Ullman em 1945, representou uma ruptura com os modelos anteriores ao assumir que a cidade não se organiza em torno de um único centro, mas de vários polos de atração. Esses polos surgem em função da especialização de atividades e das demandas da população, criando uma estrutura policêntrica. Assim, enquanto o centro principal continua concentrando atividades financeiras e administrativas, outros núcleos se formam para abrigar indústrias, comércio, universidades, áreas residenciais de alto padrão ou equipamentos culturais. Essa abordagem era mais adequada para explicar as grandes metrópoles americanas do pós-guerra, como Los Angeles, que não se estruturavam de maneira concêntrica nem setorial, mas por meio de múltiplas centralidades. A teoria também ajudava a compreender a descentralização urbana, fenômeno típico das cidades modernas, em que os subcentros adquirem autonomia e passam a competir entre si. No entanto, sua principal limitação é que, ao enfatizar os núcleos múltiplos, acaba por simplificar as relações sociais e políticas que explicam a formação desses centros. Ainda assim, foi um avanço em relação aos modelos anteriores, pois reconhecia a diversidade e a fragmentação crescentes da estrutura urbana.

A Teoria dos Núcleos Múltiplos se mostrou particularmente útil para explicar cidades em países industrializados, mas também pode ser observada em países em desenvolvimento, embora de forma adaptada. No Brasil, por exemplo, São Paulo se configura como uma metrópole de múltiplos núcleos, em que subcentros como Paulista, Berrini, Barra Funda e Santo Amaro cumprem funções diferenciadas dentro da dinâmica urbana. Esse padrão se reproduz em outras grandes cidades brasileiras, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, que possuem áreas descentralizadas de comércio, serviços e lazer. A teoria também tem afinidade com os debates atuais sobre policentrismo e cidades-região, em que diferentes municípios interconectados funcionam como polos de uma mesma rede urbana. Apesar de suas limitações, a contribuição de Harris e Ullman foi reconhecer a crescente complexidade das cidades modernas e propor um modelo que refletisse melhor essa realidade. Ao contrário dos modelos de Burgess e Hoyt, que buscavam explicar padrões relativamente simples, a teoria dos núcleos múltiplos se aproxima mais daquilo que observamos nas cidades globais contemporâneas. Isso demonstra a evolução das teorias urbanas e prepara o terreno para abordagens mais sofisticadas, voltadas ao urbanismo sustentável e à governança metropolitana.

As três teorias clássicas — Zonas Concêntricas de Burgess, Setores de Hoyt e Núcleos Múltiplos de Harris & Ullman — representam estágios fundamentais da tentativa de compreender os usos do solo urbano e as formas espaciais urbanas no século XX. Embora cada uma possua limitações, juntas elas formam um quadro evolutivo que reflete a crescente complexidade das cidades modernas. Todas partem da ideia da cidade como um sistema em transformação, onde diferentes grupos sociais e funções competem por espaço. Entretanto, enquanto Burgess ofereceu uma explicação simples e visualmente clara, Hoyt introduziu a relevância da infraestrutura e dos eixos viários, e Harris & Ullman captaram a descentralização das metrópoles. Hoje, tais modelos são mais valiosos como ferramentas de ensino e análise histórica do que como representações exatas da realidade urbana contemporânea. Isso não diminui sua importância, pois ao compreender seus limites e contribuições, conseguimos avançar em teorias mais adequadas ao contexto atual, marcado por globalização, segregação socioespacial e cidades em rede. Assim, o legado dessas teorias está em nos lembrar que as formas urbanas são construções sociais, sujeitas a transformações contínuas, e que o planejamento urbano deve estar atento a essas dinâmicas para promover cidades mais inclusivas e sustentáveis.

Referências

BURGESS, Ernest. The Growth of the City: An Introduction to a Research Project. Chicago: University of Chicago Press, 1925.

HOYT, Homer. The Structure and Growth of Residential Neighborhoods in American Cities. Washington: Federal Housing Administration, 1939.

HARRIS, Chauncy; ULLMAN, Edward. The Nature of Cities. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 1945.

CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. São Paulo: Ática, 2004.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.

VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998.
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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Introdução à Filosofia do Planejamento: Dimensões Ética, Política e Social

O planejamento urbano, longe de ser uma mera ação técnica ou administrativa, está profundamente ancorado em conceitos filosóficos que orientam seus fundamentos. As filosofias do planejamento envolvem dimensões éticas — concernentes ao bem comum e à justiça social; políticas — ligadas às relações de poder, governança e participação; e sociais — voltadas à qualidade de vida e ao respeito ao indivíduo e às comunidades. Entender o planejamento urbano exige, portanto, apreender como essas três dimensões se entrelaçam, moldando a forma, o processo e os fins da intervenção urbana. Ética implica perguntar: “para quem planejamos?”. Política exige reflexão: “quem decide e como se exerce esse poder?”. O aspecto social provoca: “como o planejamento responde às necessidades humanas?”. Em sua essência, essa tríade constitui a base do planejamento humano e urbano contemporâneo. O profundo olhar filosófico ajuda a evitar que o planejamento se reduza à técnica vazia, convocando o profissional a considerar sempre os implicados por suas ações políticas e sociais.

Ampliando a reflexão ética, o planejamento exige que as decisões promovam equidade e direitos fundamentais. Não basta planejar eficientemente; é essencial que se planeje com justiça. Por exemplo, políticas de habitação social devem garantir moradia digna em áreas com infraestrutura adequada, não apenas replicar loteamentos periféricos sem acesso eficiente a transporte e serviços urbanos. Um exemplo atual é o Plano Diretor de Curitiba que inclui zonas de interesse popular em áreas centrais, evitando segregação espacial — uma dimensão ética clara aplicada. Essa preocupação ética conecta-se com o debate político: quem tem voz no planejamento e quem se beneficia dos seus resultados? Daí se liga à dimensão social: o planejamento não se exerce no vácuo, mas em contextos humanos específicos, que exigem reconhecimento da diversidade e do direito à cidade. Esses fundamentos preparam o terreno para examinar os modelos filosóficos específicos — como os modelos democrático e humanista — que formam os pilares do planejamento moderno.

A dimensão política nos leva a considerar o planejamento como arena de poder, mas também de pactos democráticos. Decidir o que priorizar (transporte, habitação, cultura) reflete escolhas políticas e morais. Já o aspecto social reforça que essas escolhas impactam vidas concretas: um parque urbano não é apenas espaço público, mas lugar de convivência, saúde e lazer para crianças, idosos e trabalhadores. Assim, ética, política e social se interconectam: o correto, o decidido e o vivenciado. Antes de avançar para modelos específicos, é vital reconhecer essas dimensões como parte indivisível da filosofia do planejamento — pretender separar técnica de valor é desconhecer que toda intervenção urbana tem efeitos tangíveis, simbólicos e estruturantes sobre os cidadãos.

Dentro desse quadro, destacam-se duas vertentes filosóficas fundamentais: a abordagem democrática, que valoriza a participação ativa dos cidadãos como sujeitos de mudança; e a humanista, que coloca o ser humano no centro do planejamento, respeitando sua escala e diversidade. Esses modelos não se excluem, mas se complementam: um planejamento pode ser democrático, permitindo que a comunidade participe, e também humanista, atendendo às necessidades reais de gente comum. Ao entendermos essas filosofias, o profissional percebe que o planejamento eficaz não se mede apenas por eficiência, mas também por legitimidade social e adequação à vida urbana. Seguem-se, então, explorações detalhadas de cada filosofia.

A filosofia democrática sustenta que o planejamento deve emergir das aspirações coletivas, e não impor uma visão técnica sem consulta. Exemplos contemporâneos incluem cidades que usam plataformas virtuais para co-criar seus Planos Diretores, como Boston e Barcelona, onde cidadãos sugerem, votam e deliberam sobre prioridades urbanas. Esse modelo reconhece que moradores locais têm conhecimento prático do território que o técnico não possui. A participação plena — audiências, oficinas, discussões públicas — confere legitimidade e potencializa adesão às políticas. O plano deixa de ser um documento técnico isolado, tornando-se pacto social, fruto da construção coletiva. Essa prática reafirma os valores democráticos no planejamento e cria responsabilidade compartilhada entre gestores e sociedade civil.

Além de reforçar legitimidade, a filosofia democrática promove justiça espacial e apropriação cidadã do espaço urbano. Em Medellín, Colômbia, a construção de bibliotecas e escadas rolantes em encostas marginalizadas foi fruto da participação comunitária, reforçando pertencimento e reduzindo violência. Isso ilustra como o planejamento democrático transforma o ambiente urbano e empodera comunidades vulneráveis. Porém, esse modelo exige mecanismos eficazes de representação e transparência, sob pena de se tornar simbólico. A reflexão política envolve, então, não apenas ouvir, mas garantir que essa voz influencie projetos concretos — um desafio prático que une ética, política e social em um processo verdadeiramente democrático.

A filosofia humanista aborda a cidade através da dimensão humana: infraestrutura e espaços devem estar adaptados à vida das pessoas, respeitando corpo, mobilidade e convivência. O conceito de “escala humana” aplicada no New Urbanism valoriza quarteirões que podem ser atravessados rapidamente, calçadas seguras e praças próximas às residências. Em Copenhague, por exemplo, bairros inteiros são planejados para ciclistas, com infraestrutura segura e acessível, respeitando o ritmo humano e promovendo bem-estar físico. Esses projetos mostram que um planejamento centrado no ser humano não é utópico, mas aplicável e eficaz — essencial na filosofia que prioriza a qualidade de vida cotidiana.

Toda política urbanística humanista considera as diversas necessidades do público — crianças, idosos, pessoas com deficiência. A estratégia de cidade 15 minutos, adotada por Paris, prioriza que todos os serviços básicos (saúde, educação, comércio) estejam a apenas 15 minutos de caminhada, reduzindo deslocamentos e promovendo inclusão. Esse modelo humaniza o espaço e o tempo urbano, evidenciando valor social e ético do planejamento. A filosofia humanista, portanto, complementa a democrática ao buscar que a vida urbana seja digna, acessível e sustentável para todos.

O debate filosófico entre livre-arbítrio e determinismo também ecoa no planejamento urbano. O livre-arbítrio valoriza a imprevisibilidade das escolhas humanas; o determinismo, a previsibilidade e padrões coletivos. No planejamento, não podemos prever o comportamento de cada indivíduo, mas podemos estudar tendências — como que certos bairros se tornam polos culturais. Essa tensão demanda flexibilidade: o plano deve ser estruturado para orientar, sem rigidificar. A abordagem adaptativa e incremental de planejamento permite acomodar mudanças, ilustrando uma síntese prática entre espontaneidade individual e previsão coletiva.

Planejar é também exercer poder — escolher o que priorizar e como usar os recursos territoriais. Na era contemporânea, é crucial evitar concentrações autoritárias. A teoria de Flyvbjerg em Rationality and Power destaca como o planejamento muitas vezes legitima interesses de poder em nome da racionalidade (FLYVBJERG, 1998). Exemplo: a construção de viadutos pode desconectar bairros pobres do centro urbano, priorizando a fluidez veicular em detrimento da coesão social. Esse exemplo evidencia que todo ato técnico pode reforçar desigualdades se não houver vigilância ética e política.

Mitigar essas tensões exige transparência, controle social e distribuição do poder. O conceito de justiça espacial de David Harvey e Edward Soja propõe que o acesso a recursos urbanos (transporte, serviços, espaços públicos) seja equitativo como condição de justiça urbana (SPATIAL JUSTICE, 2025). Políticas como cotas de habitação social em bairros centrais de grandes cidades brasileiras são tentativas de reverter segregação. São formas de redistribuição espacial e política, alinhadas à filosofia de planejamento que busca retomar o direito à cidade para todos — movimento essencial contra vieses de poder.

As filosofias do planejamento — democrática, humanista, reflexões sobre poder e determinismo — formam um arcabouço teórico robusto, indispensável à prática do planejamento urbano. Elas garantem que o processo não seja apenas técnico, mas também ético, político e socialmente legítimo. Ao conjugar participação cidadã, escala humana, adaptabilidade e justiça espacial, cria-se a possibilidade de cidades mais inclusivas, sustentáveis e sensíveis às necessidades humanas. O planejamento, assim, assume seu papel de arte e ciência em coexistência com o bem comum, consolidando sua relevância para o desenvolvimento equitativo e emancipatório das sociedades urbanas contemporâneas.

Referências

FLYVBJERG, Bent. Rarionality and Power: Democracy in Practice. Chicago: University of Chicago Press, 1998.

SPATIAL JUSTICE. Wikipedia. 2025. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/spatial_justice.

PARTICIPATORY PLANNING. Wikipedia, 2025. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Participatory_planning.

PLANNING THEORIES. Wikipedia, 2025. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Theories_of_urban_planning.

GOOD, Bill; et al. A Humanist Perspective on Knowledge for Planning: Implications for Theory, Research and Practice. ResearchGate, 2017.

DETERMINISM AND FREE WILL. Orion Philosophy, 2022. Disponível em: https://orionphilosophy.com/free-will-vs-determinism/.

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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Planejamento Urbano: Generalidades e Equipes de Trabalho

Planejamento é um processo que engloba o estabelecimento de objetivos claros, a análise de contextos e a formulação de ações para alcançar resultados desejados com eficiência e racionalidade. No ambiente das organizações – públicas ou privadas – o planejamento é mais do que um simples planejamento de atividades; ele é um método estruturado de antecipação e controle, capaz de transformar realidades complexas em trajetórias ordenadas. No âmbito urbano, o planejamento serve como bússola para orientar o desenvolvimento sustentável das cidades, integrando diferentes dimensões da vida coletiva. Ele se diferencia de práticas fragmentadas ou reativas, pois busca sistematização, projeção e articulação de recursos com inteligibilidade. Em resumo, planejamento significa “planejar hoje para o amanhã”, estruturando recursos e ações frente aos desafios emergentes (SANTOS, 2016).

O planejamento pode ser distinguido em três níveis interdependentes: estratégico, tático e operacional. O planejamento estratégico, voltado ao longo prazo (5–10 anos ou mais), define a visão de futuro e os objetivos gerais do território ou organização. Por exemplo, um município define como meta reduzir em 30% as emissões de CO₂ em duas décadas por meio de políticas urbanas. O planejamento tático, de médio prazo (1–3 anos), traduz essas diretrizes em programas locais, como adoção de ciclovias ou sistemas inteligentes de iluminação. Por fim, o planejamento operacional, com foco no curto prazo (semestral a anual), contempla a execução das ações, como cronograma de implantação das ciclovias ou instalação de postes com sensores de tráfego. Cada nível complementa os demais: o estratégico orienta, o tático planeja caminhos e o operacional realiza. Esse tripé está presente tanto nos setores públicos quanto nas empresas privadas (TREASY, 2015).

O planejamento urbano é a disciplina técnico-científica que lida com a criação de políticas para organizar e melhorar a vida em áreas urbanas existentes ou a serem implementadas. Essa prática envolve articulação entre gestão de uso do solo, mobilidade, habitação, infraestrutura e espaços públicos, visando qualidade de vida e sustentabilidade (WIKIPEDIA, 2025). Em essência, é atuar sobre o espaço urbano considerando seus fluxos sociais, ambientais e econômicos, com visão holística e regulada. Exemplos atuais incluem a revisão do Plano Diretor de São Paulo, com foco no adensamento em áreas centrais, transporte público eficiente e controle ambiental.

As dimensões fundamentais do planejamento urbano permeiam diferentes aspectos da vida urbana. A habitação demanda políticas de inclusão e condições dignas de moradia, como programas habitacionais integrados à infraestrutura. A mobilidade urbana implica implantação de ônibus BRT, ciclovias e metrobus para facilitar o deslocamento. O saneamento exige redes de água e esgoto adequadas, crucial para evitar doenças em favelas ou periferias. O meio ambiente inclui parques urbanos, gestão de resíduos e corredores verdes que amenizam ilhas de calor. A economia urbana, por sua vez, busca fomentar comércio local, inovação e geração de empregos. Por fim, a cultura se manifesta em centros comunitários e preservação do patrimônio histórico. O exemplo de Curitiba, que combinou transporte eficiente, espaços verdes e uso misto, ilustra essas dimensões integradas de maneira harmônica.

Planejamento e gestão são dois momentos distintos, porém complementares, do processo urbano. O planejamento estabelece diretrizes, objetivos e cenários futuros; já a gestão implementa, monitora e ajusta as ações cotidianas. Um claro exemplo dessa diferença está no Plano Diretor (planejamento) e sua execução prática na entrega de infraestrutura ou fiscalização urbanística (gestão). Uma cidade pode ter um ótimo planejamento, mas se não houver capacidade de gestão — orçamento, pessoal e coordenação — os planos permanecem no papel. A distinção não serve apenas para delimitar funções, mas para estruturar responsabilidades e garantir continuidade entre visão e execução.

O planejamento integrado significa articular diferentes dimensões (técnica, social, econômica) e níveis administrativos (União, Estados, Municípios, bairros). Ele se diferencia de abordagens isoladas por priorizar a complementaridade. Por exemplo, um projeto de habitação popular precisa incluir estudos de mobilidade, drenagem e participação comunitária. A falta dessa integração frequentemente resulta em projetos fragmentados — habitações sem acesso rodoviário ou áreas verdes sem conectividade. O planejamento moderno exige, portanto, cooperação entre setores e escalas, bem como participação social, para efetivar políticas urbanas eficazes.

Na dimensão horizontal, o planejamento deve articular setores como saúde, educação, transporte, meio ambiente e economia. Já na dimensão vertical, engloba-se desde a esfera federal até as comunidades locais. Um exemplo prático é o Programa Minha Casa Minha Vida, que articulou recursos federais, estaduais para infraestrutura local e cooperação comunitária — um caso típico de integração horizontal e vertical. Essa coordenação entre níveis torna possível responder de maneira coesa às demandas urbanas complexas, alinhando estratégias gerais com necessidades locais.

A participação social é elemento central do planejamento integrado. Audiências públicas, conselhos e conferências municipais permitem que os moradores influenciem o desenho urbano. Um exemplo recente é a revisão do Plano Diretor de Recife, que envolveu debate com movimentos sociais, entidades culturais, técnicos e prefeitura; o resultado foi a inclusão de zonas territoriais específicas para cultura comunitária, sustentabilidade e mobilidade ativa, colocando em evidência a relevância da participação cidadã. Soou não apenas como técnica, mas como pacto político-territorial.

Nacionalmente, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) define diretrizes e instrumentos como o Plano Diretor Municipal e outorga onerosa — fundamentais para ordenar a expansão urbana (WIKIPEDIA, 2025). No nível regional ou metropolitano, os planos estruturantes articulam municípios vizinhos, como o plano da Região Metropolitana de Goiânia, que tratou mobilidade, acessibilidade e saneamento de forma integrada. Esses níveis orientam diretrizes macro e balizam as políticas municipais.

No âmbito municipal, o Plano Diretor é lei em cidades com mais de 20 mil habitantes, orientando o funcionamento urbano, uso do solo e infraestrutura pública (WIKIPEDIA, 2025). Em nível local, intervêm projetos específicos, como requalificação de bairros históricos, regularização fundiária ou projeto de praças. A execução envolve técnicos, órgãos municipais e participação comunitária, mostrando como a política geral se materializa em escala específica.

Planejar cidades exige competências variadas: urbanistas, arquitetos, geógrafos, engenheiros cartógrafos, agrimensores, economistas, sociólogos, advogados, psicólogos, comunicadores — todos presentes em equipes integradas (SOMOSCIDADE, 2025). Exemplos contemporâneos incluem os grupos de pesquisa do Insper (Arq.Futuro, Cidades Responsivas), que reúnem urbanismo, tecnologia e economia urbana (CAOSPLANEJADO, 2025). Essa multiplicidade garante diagnósticos precisos, projetos holísticos e maior aderência às demandas sociais.

O planejamento urbano é um processo complexo e multidimensional, estruturado em níveis estratégico, tático e operacional. Sua efetividade depende da integração horizontal (setorial) e vertical (escalar), da participação social e da atuação de equipes multidisciplinares. Instrumentos como o Plano Diretor, fundamentados pelo Estatuto da Cidade, constituem a base normativa da política urbana brasileira. Quando integrados, setores técnicos, sociais e políticos convergem para cidades sustentáveis, equitativas e resilientes. O papel do engenheiro cartógrafo e do agrimensor é essencial neste contexto, pois fornecem a base espacial e técnica para o ordenamento urbano, fortalecendo a transição do planejamento para a gestão em benefício da coletividade.

Referências

BRASIL. Estatuto da Cidade. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001.
CAOSPLANEJADO. “Futuro do Insper e outros projetos com equipes multidisciplinares.” Caos Planejado, 2025.
SANTOS, Angela Moulin S. Penalva. “Planejamento urbano: para quê e para quem?” Revista de Direito da Cidade, UERJ, v. 1, n. 1, 2016.
SOMOSCIDADE. “Planejadores urbanos: quem são, o que fazem e mudanças na profissão.” SomosCidade, 2025.
TREASY. “Planejamento Estratégico, Tático e Operacional – O Guia.” Treasy, 2015.
WIKIPEDIA. “Planejamento urbano.” Wikipedia, 2025.
WIKIPEDIA. “Plano Diretor Municipal.” Wikipedia, 2025.
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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Transformação entre Referenciais Geodésicos

Um Sistema Geodésico de Referência (SGR) é o conjunto de convenções, parâmetros matemáticos, físicos e geométricos que permitem representar, de forma precisa, a forma, a posição e a orientação da Terra, ou ainda de pontos situados em sua superfície. De acordo com Oliveira (1998), sua implantação pode ser compreendida em quatro etapas fundamentais: conceito, definição, materialização e densificação. O conceito corresponde à escolha da origem e à fixação da orientação dos eixos de coordenadas, podendo a origem estar no centro de massa da Terra ou deslocada para um ponto local específico. A definição consiste em estabelecer formalmente os parâmetros do elipsoide de referência e da escala associada ao sistema. A materialização se dá pela implantação de marcos geodésicos, isto é, pontos físicos no terreno com coordenadas conhecidas, que servem como referência para levantamentos. Por fim, a densificação amplia a rede geodésica inicial, distribuindo mais pontos para garantir maior cobertura espacial. A necessidade de transformações entre diferentes sistemas ocorre porque, historicamente, países e instituições adotaram referenciais distintos, muitas vezes de caráter local, como os sistemas Córrego Alegre e SAD69 no Brasil. Com o avanço das técnicas de posicionamento por satélites, como os sistemas GNSS (Global Navigation Satellite Systems), tornou-se imperativo o uso de referenciais globais, como o SIRGAS2000 e o WGS84, garantindo compatibilidade internacional. Contudo, como grande parte do acervo cartográfico e das bases de dados ainda se encontra em referenciais antigos, são indispensáveis transformações matemáticas que viabilizem a comparação, integração e uso conjunto dessas informações geoespaciais.

Historicamente, os sistemas geodésicos de concepção clássica estabeleciam diferenciações entre referenciais horizontais e verticais. O SGR horizontal era responsável pelas coordenadas planimétricas (latitude e longitude) e era definido a partir de um elipsoide ajustado localmente ao geóide, sendo que o centro desse elipsoide geralmente não coincidia com o centro de massa da Terra, mas estava associado a um ponto datum de origem definido por observações astronômicas. Já o SGR vertical fornecia a referência para altitudes, geralmente associadas ao nível médio do mar, definido por marégrafos e nivelamentos de alta precisão. No Brasil, o Marégrafo de Imbituba, em Santa Catarina, serviu como origem da rede altimétrica nacional. Esses sistemas clássicos, apesar de fundamentais para o desenvolvimento inicial da cartografia, apresentavam limitações quanto à compatibilidade global, pois eram concebidos para atender apenas às necessidades regionais. Com a chegada da Geodésia moderna, fortemente baseada em técnicas espaciais, tornou-se necessário adotar sistemas geocêntricos, cuja origem está no centro de massa da Terra e cujos eixos se alinham ao eixo de rotação. Essa mudança gerou a necessidade de transformar coordenadas antigas, referidas a sistemas locais, em sistemas globais, de modo a assegurar consistência entre levantamentos históricos e atuais.

As transformações entre sistemas de referência podem ser realizadas por diversos métodos, variando de acordo com a complexidade matemática e o nível de precisão requerido. No Brasil, a Resolução PR nº 22/1983 do IBGE estabeleceu oficialmente o uso das equações simplificadas de Molodensky como padrão de conversão entre sistemas, especialmente entre o SAD69 e outros referenciais. Essas equações consideram diferenças nos parâmetros elipsoidais, como o semieixo maior (a) e o achatamento (f), além de translações entre os centros de referência. Embora simples, tais equações apresentaram resultados satisfatórios para a cartografia em escala nacional, apesar de não atenderem plenamente às demandas de precisão centimétrica. Mais tarde, a Resolução PR nº 23/1989 do IBGE oficializou parâmetros de transformação entre SAD69 e WGS84, atendendo à crescente utilização do GPS, que opera nativamente neste último sistema. Com isso, o Brasil passou a dispor de metodologias normatizadas que permitiram compatibilizar levantamentos nacionais com os padrões internacionais, fundamentais para integração tecnológica e científica.

As equações simplificadas de Molodensky constituem um modelo matemático que relaciona diretamente coordenadas geodésicas (latitude, longitude e altitude) entre dois referenciais, levando em conta parâmetros como translações (Δx, Δy, Δz), variação do semieixo maior (Δa) e diferença de achatamento (Δf). De aplicação relativamente simples, esse método foi amplamente difundido no Brasil, especialmente após sua normatização pelo IBGE. Contudo, como toda simplificação, ele introduz aproximações que podem gerar erros significativos em trabalhos de maior rigor. Para demandas mais precisas, existem as equações completas de Molodensky, que não fazem as mesmas simplificações, oferecendo resultados mais consistentes. Além disso, métodos mais sofisticados, como a transformação de Helmert (sete parâmetros), tornaram-se padrão em trabalhos que exigem elevada acurácia, como monitoramento geodinâmico, redes de alta precisão e georreferenciamento de imóveis. Esse modelo permite considerar translações, rotações e um fator de escala, gerando resultados robustos em escala global. Assim, a escolha do método de transformação deve sempre estar condicionada ao objetivo do estudo e ao nível de precisão exigido.

Outro aspecto importante diz respeito ao uso de coordenadas cartesianas tridimensionais (X, Y, Z) nos processos de transformação. Muitos sistemas modernos, como o WGS84 e o SIRGAS2000, trabalham diretamente com essas coordenadas obtidas a partir de observações GNSS. A conversão para coordenadas geodésicas (latitude, longitude e altura) exige fórmulas geométricas que relacionam o raio de curvatura, a altitude e os ângulos correspondentes à posição do ponto no elipsoide. Quando se deseja realizar transformações entre sistemas distintos, é comum aplicar primeiramente parâmetros de translação, rotação e escala sobre as coordenadas cartesianas e, em seguida, convertê-las novamente para coordenadas elipsoidais. Esse procedimento é considerado mais preciso, pois minimiza distorções locais e inconsistências oriundas de redes clássicas. Por esse motivo, transformações modernas entre SAD69 e SIRGAS2000 frequentemente são feitas no espaço cartesiano, garantindo maior consistência e confiabilidade dos resultados, especialmente quando se trata de compatibilizar levantamentos de diferentes épocas.

No contexto brasileiro, a transformação entre o SAD69 e o SIRGAS2000 é especialmente relevante. Isso porque, embora o SIRGAS2000 tenha sido oficialmente adotado como o referencial nacional em 2005, grande parte do acervo cartográfico, assim como bancos de dados públicos e privados, ainda permanece em SAD69. Essa dualidade exige processos de transformação constantes para que informações históricas possam ser integradas às bases modernas. O IBGE fornece parâmetros oficiais de conversão que asseguram a compatibilidade entre os dois sistemas. Em georreferenciamento de imóveis, por exemplo, é comum a necessidade de ajustar vértices cadastrados em SAD69 para o sistema atual, sob pena de inconsistências legais e técnicas. Além disso, deve-se considerar que o SIRGAS2000 é dinâmico, vinculado ao ITRF (International Terrestrial Reference Frame), o que implica a necessidade de considerar o tempo de observação, já que o deslocamento das placas tectônicas gera variações de coordenadas ao longo dos anos.

Outro caso frequente de conversão ocorre entre o WGS84 e o SIRGAS2000. Embora ambos utilizem elipsoides quase idênticos (GRS80 e WGS84, com pequenas diferenças no achatamento), divergências podem ocorrer em função das diferentes realizações temporais. O WGS84 passou por diversas atualizações (G730, G873, G1150, G1674, entre outras), cada uma mais alinhada às versões do ITRF, enquanto o SIRGAS2000 é uma realização estável vinculada ao ITRF2000. Para aplicações de navegação, as diferenças podem ser negligenciáveis, mas em estudos de alta precisão, como os relacionados ao monitoramento de deformações crustais ou de variações do nível do mar, torna-se essencial aplicar transformações formais. Nesse contexto, além da compatibilidade espacial, deve-se considerar também a coerência temporal, garantindo que os dados estejam referidos à mesma época geodésica, sem o que análises científicas poderiam ser comprometidas.

É importante salientar que as transformações entre sistemas de referência não possuem apenas um caráter técnico, mas também jurídico e institucional. No Brasil, o georreferenciamento de imóveis rurais, regulamentado pelo Incra, exige que os levantamentos sejam feitos no SIRGAS2000, impondo a necessidade de conversão de informações produzidas em SAD69. O IBGE desempenha papel central nesse processo, fornecendo parâmetros e ferramentas oficiais que asseguram uniformidade. O uso de métodos ou parâmetros não oficiais pode levar a erros jurídicos e comprometer a validade de trabalhos técnicos. No âmbito internacional, organismos como o IERS (International Earth Rotation and Reference Systems Service) e a IAG (International Association of Geodesy) estabelecem diretrizes que orientam transformações globais, permitindo que redes internacionais de observação, como o GNSS ou o SLR, operem de forma integrada. Isso garante que projetos multinacionais possam compartilhar e comparar dados de forma consistente, mesmo quando obtidos a partir de referenciais diferentes.

Um dos aspectos mais críticos nas transformações é o controle da precisão. Cada método apresenta limitações que precisam ser compatíveis com o objetivo do trabalho. As equações simplificadas de Molodensky, por exemplo, são adequadas para cartografia em pequena escala, mas podem gerar erros da ordem de metros, inviáveis em aplicações de engenharia. Modelos mais robustos, como o de Helmert, ou transformações via coordenadas cartesianas tridimensionais, podem atingir precisão centimétrica ou até milimétrica, tornando-se essenciais em estudos geodinâmicos e em georreferenciamentos oficiais. Além disso, é fundamental utilizar parâmetros de transformação oficiais fornecidos por órgãos como o IBGE, evitando erros sistemáticos que possam comprometer resultados. Em tempos de crescente integração de dados em sistemas de informação geográfica (SIG), a coerência espacial só pode ser assegurada por meio de transformações bem aplicadas e controladas.

Em conclusão, as transformações entre sistemas de referência geodésicos representam um tema central para a Geodésia contemporânea. Elas viabilizam a compatibilização de levantamentos de diferentes épocas e referenciais, assegurando a continuidade e a comparabilidade de informações espaciais que sustentam desde a cartografia básica até estudos de fronteira sobre mudanças climáticas e tectonismo. No Brasil, a transição do SAD69 para o SIRGAS2000 constitui um marco da modernização geodésica, alinhando o país aos padrões internacionais. Mais do que operações matemáticas, tais transformações envolvem uma complexa articulação de aspectos técnicos, científicos e legais, refletindo a interdependência entre a Geodésia e diversas áreas da sociedade. Compreender profundamente seus fundamentos, métodos e implicações é indispensável para pesquisadores e profissionais que atuam com informações geoespaciais, consolidando a integração entre o passado e o presente da Geodésia, e preparando o caminho para os desafios futuros da ciência da Terra.

Referências

GOMES, D. S. Transformações entre Sistemas de Referências Geodésicos. Aula da disciplina Geodésia II, 2025.
IBGE. Resolução PR nº 22, de 21 de julho de 1983.
IBGE. Resolução PR nº 23, de 21 de fevereiro de 1989.
IBGE. Resolução Presidencial nº 1, de 2005. Altera a caracterização do Sistema Geodésico Brasileiro.
MONICO, J. F. G. Posicionamento pelo GNSS: Descrição, fundamentos e aplicações. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2008.
OLIVEIRA, C. D. Sistemas de Referência em Geodésia. IBGE, 1998.
UFRGS. Transformação entre Referenciais Geodésicos. Disponível em: [https://www.ufrgs.br/lageo/calculos/refer\_exp.html](https://www.ufrgs.br/lageo/calculos/refer_exp.html). Acesso em: 22 mar. 2024.
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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

As cidades na era moderna e contemporânea.


A Era Industrial, iniciada entre os séculos XVIII e XIX, representa uma das mais profundas rupturas históricas na organização econômica, social e espacial das sociedades. Com a introdução da máquina a vapor, a mecanização da produção e o avanço tecnológico nas indústrias têxteis, siderúrgicas e posteriormente químicas, a urbanização experimentou uma aceleração inédita. As cidades passaram a concentrar não apenas capitais, mas também multidões de trabalhadores, migrantes do campo em busca de novas oportunidades. Este fenômeno gerou profundas mudanças na morfologia urbana: os centros tornaram-se densamente povoados, enquanto bairros operários se expandiam de maneira desordenada nas periferias. A industrialização, portanto, não apenas transformou os meios de produção, mas também redesenhou os espaços de convivência, criando novos desafios para a organização das cidades.

As transformações promovidas pela industrialização trouxeram consigo intensos contrastes. Por um lado, consolidou-se o crescimento econômico, o desenvolvimento tecnológico e a ampliação das redes de transporte, especialmente ferrovias e portos. Por outro, as cidades industriais foram marcadas pela degradação ambiental, condições insalubres de moradia e exploração da classe trabalhadora. Essa dualidade expôs a tensão entre progresso técnico e desigualdade social, um dilema que se tornaria central para as futuras teorias urbanísticas. O crescimento urbano acelerado, sem planejamento, levou ao surgimento de problemas de habitação, saneamento básico e saúde pública. Assim, a Era Industrial deve ser compreendida como um período de contrastes, em que o dinamismo econômico coexistia com a precarização das condições de vida urbana.

À medida que a industrialização avançava, novas centralidades surgiram. Cidades como Londres, Manchester, Paris e Berlim tornaram-se símbolos do crescimento urbano-industrial. A concentração fabril gerava oportunidades, mas também intensificava os problemas sociais. O êxodo rural, somado à imigração internacional, inflava as populações urbanas em ritmo muito superior à capacidade de absorção das cidades. A urbanização passou a ser um processo global, atingindo a América, a Ásia e posteriormente a América Latina, onde cidades como São Paulo e Buenos Aires experimentaram crescimento exponencial. Esse quadro impôs aos governos a necessidade de repensar a função das cidades e o papel do planejamento, dando início às bases do urbanismo moderno.

O crescimento desordenado e os problemas sanitários das cidades industriais impulsionaram a formulação de teorias urbanísticas. O urbanismo moderno nasceu como resposta à necessidade de conciliar progresso econômico e qualidade de vida. Engenheiros, médicos e arquitetos começaram a pensar a cidade de forma científica, articulando saberes interdisciplinares. As primeiras intervenções urbanas, como as reformas haussmannianas em Paris (meados do século XIX), representaram um marco na tentativa de modernizar o espaço urbano, abrindo grandes avenidas, promovendo ventilação e reorganizando o tráfego. Ao mesmo tempo, surgiram propostas alternativas, como as Cidades-Jardim de Ebenezer Howard, que defendiam a integração equilibrada entre campo e cidade. Essas ideias influenciaram profundamente os rumos do urbanismo no século XX.

O urbanismo moderno consolidou-se no início do século XX, com forte inspiração nos princípios funcionalistas. A Carta de Atenas, elaborada em 1933 pelo Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) sob a liderança de Le Corbusier, estabeleceu diretrizes que marcaram a organização das cidades contemporâneas: a separação de funções (habitar, trabalhar, circular e recrear), o zoneamento urbano e a valorização da verticalização. Apesar de sua racionalidade, essas propostas foram criticadas por promover a homogeneização espacial e a fragmentação da vida urbana. Ainda assim, o urbanismo moderno teve papel fundamental ao estruturar políticas urbanas e projetos de reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, influenciando tanto a Europa quanto a América Latina.

Ao longo do século XX, críticas às ideias modernistas se intensificaram. Autores como Jane Jacobs apontaram a importância da vitalidade urbana, da diversidade de usos e da vida comunitária nas ruas, em oposição à rigidez dos projetos modernistas. Henri Lefebvre, por sua vez, introduziu uma leitura sociológica e filosófica da cidade, discutindo o “direito à cidade” como princípio fundamental da vida urbana. Essas críticas não anularam os avanços modernistas, mas abriram espaço para novas abordagens, como o urbanismo participativo, o planejamento estratégico e as políticas de sustentabilidade urbana. Assim, a evolução urbana moderna deve ser entendida como um processo dialético entre propostas técnicas e demandas sociais.

As cidades modernas foram marcadas pelo fenômeno metropolitano. O crescimento populacional e a expansão horizontal resultaram em aglomerações urbanas de grande porte, frequentemente transbordando os limites administrativos tradicionais. A metrópole passou a ser o novo paradigma urbano, exigindo políticas regionais de planejamento. Sistemas de transporte de massa, como metrôs e rodovias, tornaram-se estruturantes da vida urbana, moldando a mobilidade e a organização do território. A concentração de atividades econômicas em áreas centrais, associada à periferização da população trabalhadora, reforçou processos de segregação socioespacial, um dos grandes desafios da urbanização moderna.

O avanço tecnológico do século XX trouxe novas camadas à urbanização. A eletrificação, os automóveis, os arranha-céus e, mais recentemente, as tecnologias digitais, transformaram radicalmente a experiência urbana. Cidades como Nova York e Tóquio simbolizaram a modernidade, com suas paisagens verticais e ritmos acelerados. No entanto, tais transformações ampliaram desigualdades: enquanto áreas centrais se modernizavam, periferias permaneciam carentes de infraestrutura básica. Além disso, os impactos ambientais do modelo de crescimento urbano, baseado no consumo intensivo de energia e na expansão horizontal, tornaram-se evidentes. O urbanismo contemporâneo, portanto, precisa conciliar inovação tecnológica e sustentabilidade.

Na contemporaneidade, o processo de urbanização atingiu escala global. Megacidades como São Paulo, Cidade do México, Xangai e Mumbai concentram dezenas de milhões de habitantes, enfrentando desafios inéditos de mobilidade, habitação e governança. O conceito de “cidade global”, desenvolvido por Saskia Sassen, enfatiza o papel das metrópoles como centros de comando da economia mundial, mas também evidencia as desigualdades sociais e territoriais que marcam tais espaços. Políticas urbanas contemporâneas passaram a dialogar com princípios de sustentabilidade, inclusão social e participação cidadã, buscando superar os limites herdados da urbanização industrial e modernista.

As cidades da era moderna e contemporânea são o resultado de um longo processo histórico, iniciado com a Revolução Industrial e continuamente moldado por transformações econômicas, sociais e tecnológicas. Se a industrialização criou as bases para a urbanização acelerada, o urbanismo moderno forneceu ferramentas para pensar e organizar o espaço urbano, ainda que com limitações. As metrópoles contemporâneas, por sua vez, representam tanto o auge da complexidade urbana quanto o desafio de conciliar desenvolvimento econômico, justiça social e sustentabilidade ambiental. Assim, compreender a trajetória das cidades modernas e contemporâneas é essencial não apenas para a Engenharia Cartográfica e de Agrimensura, mas também para o planejamento urbano e regional no século XXI.

Referências

BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1993.
CHOAY, Françoise. O Urbanismo: utopias e realidades. São Paulo: Perspectiva, 2003.
HALL, Peter. Cidades do Amanhã. São Paulo: Perspectiva, 2002.
GOMES, D. S. As cidades na era moderna e contemporânea.. Aula da disciplina Parcelamento Territorial, 2025.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
MUMFORD, Lewis. A Cidade na História. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 2001.
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A urbanização medieval.


A urbanização medieval se inscreve num período histórico marcado por transformações profundas: a queda do Império Romano do Ocidente (século V) abriu um longo ciclo de instabilidade social, política e econômica que perdurou até o início da Alta Idade Média. Nesse contexto, a perda da administração centralizada levou ao colapso de infraestruturas urbanas e à ruralização. As principais cidades do Império, outrora sustentáculo da vida pública e econômica, foram abandonadas ou enfraquecidas, inclusive no que diz respeito à manutenção das muralhas e sistemas de abastecimento e drenagem. Este período de retração urbana, intensificado pelas invasões germânicas e a fragmentação do poder, resultou na formação de comunidades dispersas, muitas vezes vinculadas a núcleos defensivos como castelos ou mosteiros. As rotas comerciais, base do cosmopolitismo romano, foram substituídas por circuitos locais, subsistentes e, em geral, instáveis. Nessa fase, o retorno à agricultura de subsistência e o domínio feudal sobre os territórios reforçaram a ruralização. Ainda assim, sobre essa realidade orgânica e fragmentada, surgiram — entre os séculos X e XI — as sementes do renascimento urbano: o crescimento dos burgos defensivos, associados a atenções militares e religiosas, e a lenta reestruturação de circuitos mercantis. Esse contexto de transição configura a base histórica para a urbanização medieval que se desenvolveu nos séculos seguintes, atravessando a desestruturação da herança romana e edificando, de forma orgânica, novas formas de centralidade urbana.

A segunda parte do contexto histórico da urbanização medieval abrange o que historicamente se denomina de Alta Idade Média e a transição para a Baixa Idade Média. Nesse período, observa-se uma gradual recomposição urbana, ainda que com características distintas da cidade romana. O sistema feudal emergiu como forma predominante de organização político-territorial, estruturando a sociedade em torno de senhores locais que exerciam autoridade sobre os camponeses. Essa descentralização do poder não favorecia naturalmente a formação urbana, porém os castelos e mosteiros passaram a funcionar não apenas como fortalezas ou centros religiosos, mas também como núcleos atrativos de comércio, proteção e circulação. Ao redor dessas fortificações, surgiram os burgos, que abrigavam artífices, comerciantes e outras pessoas que ofereciam serviços à comunidade fortificada. A existência de feiras como polos de troca também fortaleceu essas concentrações, ainda que pontuais. Ao mesmo tempo, o renascimento do comércio, especialmente a partir do século XI, propiciou o restabelecimento de ligações inter-regionais, especialmente entre cidades italianas e mercados do Norte europeu. Esse quadro histórico revela, portanto, uma urbanização medieval acentuada por dinâmicas híbridas entre estruturas defensivas e impulsos econômicos, em meio a laços sociais moldados pela ruralização e solidariedades locais. Essa recomposição marcou o início de um processo urbano que combinava centralidades defensivas com bases mercantis e espirituais, tecendo uma nova forma de cidade adaptada ao feudalismo e à fragmentação política.

Na terceira etapa desse contexto histórico, durante os séculos XII ao XV, consolidou-se o processo de urbanização medieval propriamente dito, marcado por amplo crescimento demográfico, revitalização econômica e formação de instituições urbanas articuladas com os poderes feudais ou monárquicos emergentes. Nesse momento, os burgos se expandiram além da proteção dos castelos e mosteiros, ganhando traçado mais definido, ainda que irregular, com ruas estreitas, praças centrais e muralhas externas. A população crescia significativamente, impulsionada por migração rural, aumento da produção agrícola e comércio de longa distância. A burguesia — indivíduos que viviam da atividade mercantil ou artesanal — passou a reivindicar direitos e autonomia, por meio de documentos como os forais ou cartas de privilégios municipais, negociados com nobres ou municípios. Surgem, então, novas formas de governo urbano, incluindo conselhos de cidadãos (conselhos urbanos) e guildas de ofício, evidenciando uma institucionalização progressiva. A existência de mercados permanentes e feiras periódicas fomentava a economia local, enquanto a criação de catedrais e prefeituras proclamava a centralidade religiosa e civil da cidade. Paralelamente, os poderes régios buscaram apoiar essas cidades como contrapartida ao poder feudal, gerando incentivos à expansão urbana nos séculos XIV e XV. Esse contexto culmina na formação de cidades burguesas com estrutura interna definida, protagonismo político municipal e papel crescente no panorama econômico e demográfico europeu, plantando as bases da modernidade urbana europeia.

Passando às características da urbanização medieval, cabe destacar primeiro o traçado urbano. Ao contrário do urbanismo clássico, a cidade medieval exibia ruas estreitas e tortuosas, frequentemente adaptadas ao relevo e às rotas medievais já existentes. Essas vias tinham funções múltiplas: circulação, alinhamento das fachadas, áreas de comércio e acesso às casas, frequentemente com balanços superiores e overhangs devido ao aproveitamento máximo do espaço. As ruas formavam um tecido urbano denso e orgânico, em que a distribuição espacial não era planejada de forma ortogonal, mas emergia conforme a expansão incremental da cidade. Outro elemento central era a muralha urbana. A cidade medieval tinha como destaque marcante as fortificações, que circundavam os núcleos urbanos para defendê-los de invasões e saques. Essas muralhas possuíam portais estratégicos que regulavam o acesso e eram pontos de cobrança de impostos, pedágios ou safis (taxas). Dentro dessas muralhas, encontravam-se praças, mercados e edifícios religiosos ou administrativos, compondo uma centralidade simbólica e material. Essa estrutura espacial proporcionava densidade urbana, pronunciado uso misto do solo e forte centralidade religiosa, pois as catedrais e igrejas ficavam próximas aos principais espaços públicos, afirmando o poder clerical e civìl da cidade. Dessa forma, o traçado, as muralhas e os edifícios religiosos eram elementos arquitetônicos da forma urbana medieval, determinados pela lógica da defesa, densidade e poder centrífugo do religioso.

Ainda nas características, outra dimensão essencial foi a funcionalidade comercial e artesanal. A cidade medieval era um polo de trocas e produção, com mercados permanentes e feiras especiais (semanais ou sazonais). Essas feiras atraíam mercadores itinerantes, fomentando conexões regionais e internacionais, dando início a circuitos mercantis que interligavam cidades costeiras, centrais e rurais. As corporações de ofício (guildas) organizaram o espaço urbano em bairros dedicados a determinadas atividades (ferreiros, tecelões, curtidores), controlando qualidade, preços, acesso ao ofício e formação profissional. Esse arranjo espacial fortalecia a especialização, a solidariedade corporativa e consolidava a dinâmica de produção entre o urbano e o rural. Em muitos casos, as guildas financiam capelas ou obras na cidade, reforçando sua influência social. A presença de mercados, padarias, moinhos, freguesias e oficinas saia do domínio exclusivo do sistema doméstico rural e se apropria do espaço urbano como eixo de desenvolvimento coletivo e institucionalizado. Essa central funcional, na cidade medieval, era um mosaico de atividades econômicas reguladas pelo município, pela igreja, ou mesmo por corporações privadas, reforçando a complexa organização sociotécnica urbana da época.

A terceira característica remete à autonomia institucional urbana em formação. À medida que as cidades ganhavam importância econômica, seus habitantes — em particular os burgueses e mercadores — pressionavam por autonomia política e legal. Essa demanda se expressou através de cartas de foral, privilégios ou franquias concedidos por senhores feudais ou pela coroa, conferindo às cidades o direito de se auto-governarem com tribunais próprios, câmaras municipais, câmaras de ofícios e fiscalizações urbanas. Essa autonomia se manifestava na gestão do mercado, regulação de ruas, controle sanitário emergente (limpeza, abastecimento de água nas fontes, destinação de lixo) e organização da vigilância pública. Assim, a cidade medieval se configurava como território com jurisdição própria, distinta do meio rural, e dotado de poderes executivos e judiciais locais. Essa institucionalização urbana é uma característica essencial, pois marca a transição da cidade meramente reativa (defesa e abrigo) para o agente ativo na governança do próprio espaço, com regulação social, econômica e até policial emergente. Essas instituições, ainda rudimentares, formam a espinha dorsal da cidade moderna, delineando a lógica de autogoverno, soberania municipal e regulação pública do espaço urbano.

No que tange às etapas do processo urbanístico medieval, cabe identificar uma sequência lógica temporal e social. A primeira fase foi a retração urbana, iniciada no século V, quando grandes cidades romanas declinaram — sem abandono súbito, mas com desarticulação gradual —, culminando em fragmentação feudal, ruralização demográfica e até a perda de capacidade de renovação arquitetônica e urbana. Essa etapa define o ponto zero do ciclo urbano medieval.

A segunda fase inicia-se a partir do século X–XI com a renovação urbana, impulsionada por fatores como o aumento da produtividade agrícola, revitalização dos circuitos comerciais, desenvolvimento de rotas fluviais e mercantilismo de curta distância. Nesse contexto, os burgos tornam-se centros de comércio, produzindo um espaço urbano articulado defensivamente, com ruas estreitas e muralhas externas. Esse estágio tem como marco a retomada populacional e a fundação organizada de bairros, associando crescimento econômico com reafirmação simbólica do poder urbano (mercados, igrejas, autogoverno).

Por fim, a terceira fase se caracteriza pela maturação urbana, ocorrendo nos séculos XIII a XV, que coincide com o crescimento das cidades como atores decisivos na economia e na política regional. Nesse período, as cidades burguesas eram dotadas de estruturas mais consolidadas: conselhos municipais, fiscalização, corporações de ofício, canais ou drenagem primária, compromisso sanitário incipiente, habitações com tipologias dominadas pelo espaço limitado e altos corredores comerciais. A monumentalidade aparece com a construção de catedrais em estilo gótico, muradas expandidas, pontes de pedra e construção de prédios administrativos. A urbanização medieval chega, assim, ao seu auge antes da transição renascentista, entregando cidades com identidade jurídica, econômica e visual estruturada.

Entendendo agora dados históricos concretos, a Primeira Cruzada (1095–1099), embora um evento eminentemente militar e religioso, influenciou indiretamente a urbanização, pois fortaleceu as cidades-portos mediterrâneas, como Veneza, Génova e Amsterdã — estes centros com tradições mercantis antigas ganharam novos mercados e rotas, impulsionando sua expansão urbana e navegação, gerando uma nova malha urbana comercial.

Outro acontecimento relevante foi a Peste Negra (1347–1351), que transformou dramaticamente a demografia urbana, causando declínio populacional, escassez de mão de obra e, por conseguinte, valorização dos trabalhadores urbanos e rurais. Isso gerou negociações sociais e fortaleceu guildas que defendiam interesses comerciais e sanitários. A peste gerou reconfigurações espaciais e sociais imediatas: ruas mais amplas em alguns casos, reorganização dos mercados e incremento de políticas de limpeza pública, ainda rudimentares.

O terceiro acontecimento foi a Guerra dos Cem Anos (1337–1453) entre França e Inglaterra, que gerou devastação em regiões urbanas, deslocamentos populacionais e fortalecimento de muralhas e defesas urbanas. Ao mesmo tempo, incentivou o fortalecimento de conselhos urbanos que assumiam responsabilidades de defesa e abastecimento dos moradores, alimentando formas de autogoverno urbano. As cidades fortificadas se tornaram verdadeiras “cidades-castelo”, em que o poder militar e urbano se entrelaçavam.

Em síntese, a urbanização medieval é um fenômeno histórico complexo, marcado por fases de gestação, expansão e consolidação, profundamente articulado com a ruralização, o feudalismo, o renascimento mercantil e eventos decisivos como cruzadas, epidemias e conflitos territoriais. Do esvaziamento urbano pós-Roma ao florescimento de cidades burguesas, o tecido urbano medieval reflete uma transição institucional, econômica e espacial que consolidou o caráter autônomo da cidade. Características como traçado orgânico, muralhas defensivas, instituições corporativas e catedralinas, foram progressivamente substituídas ou complementadas por autonomia jurídica, comércio articulado e identidade urbana. Esses elementos convergiram para um modelo urbano europeu que sobreviveu (e transformou-se) até o Renascimento e além, moldando práticas de planejamento, governança local e técnicas de levantamento espacial essenciais à engenharia cartográfica e agrimensura atuais.

Referências

BACHRACH, Bernard. City and Salvation: Religion in the City, from Late Antiquity to the Middle Ages. Cornell Univ. Press, 2010.
HUFF, Toby (ed.). The Rise of Early Modern Science: Islam, China and the West. Cambridge University Press, 2003 (capítulo sobre as cruzadas e comercialização).
CANTOR, Norman F. The Civilization of the Middle Ages. HarperCollins, 1993.
EPSTEIN, Steven A. Genoa and the Genoese, 958–1528, The Evolution of Modern Governance and Civilization. University of North Carolina Press, 1996.
GOLDSTONE, Jack. Why Europe? The Rise of the West in World History, 1500–1850. McGraw-Hill, 2008 (contextualização de crise e recuperação medieval).
GOMES, D. S. A urbanização medieval. Aula da disciplina Parcelamento Territorial, 2025.
“The Black Death and urban responses” — Journal of Medieval History, vol. 37, issue 2, 2011.
“Medieval towns: everyday life in the Middle Ages” — Encyclopaedia Britannica (versões online).
“Hanseatic League urban networks” — Cambridge History of Christianity, vol. 4.
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quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Sistema Geodésico Brasileiro: Histórico e Atual Sistema Geodésico Brasileiro


Um sistema geodésico é definido como o conjunto de referenciais matemáticos, físicos e técnicos que possibilitam a determinação precisa da forma, do tamanho e da posição da Terra, bem como a localização de pontos em sua superfície. Ele constitui a base de todos os trabalhos de Geodésia e Cartografia, fornecendo o suporte para medições espaciais, levantamentos topográficos, georreferenciamento e aplicações de navegação. A definição de um sistema geodésico envolve três elementos fundamentais: o datum geodésico, que estabelece as condições de origem, orientação e forma do elipsoide de referência; a rede geodésica, que materializa o datum por meio de pontos com coordenadas conhecidas; e os modelos matemáticos, que permitem a conversão entre diferentes sistemas de coordenadas e a correção de efeitos físicos da Terra. A construção de um sistema geodésico é essencial porque a Terra não é um corpo regular, e sua forma apresenta irregularidades que exigem modelos precisos para representações confiáveis. Além disso, à medida que a tecnologia evolui, especialmente com o uso de satélites artificiais, sistemas globais de posicionamento e observações geofísicas, tornou-se necessário atualizar periodicamente esses referenciais para garantir a coerência entre as medições locais e globais. Assim, compreender o conceito e a função de um sistema geodésico é o primeiro passo para analisar a evolução histórica e o estado atual do Sistema Geodésico Brasileiro (SGB).

A rede planimétrica constitui um dos pilares do Sistema Geodésico Brasileiro, sendo responsável por fornecer a localização de pontos na superfície terrestre em termos de latitude e longitude. Historicamente, essa rede foi materializada por marcos geodésicos implantados em campo, os quais serviram como referenciais fixos para levantamentos topográficos e cartográficos. Inicialmente, sua implantação se dava por meio de métodos clássicos, como triangulação e trilateração, técnicas que envolviam medições angulares e lineares em grandes extensões do território. Com o tempo, a densificação dessa rede foi realizada por observações astronômicas e, mais recentemente, por técnicas de posicionamento por satélites, como o GNSS (Global Navigation Satellite Systems). A rede planimétrica brasileira, além de servir como base para a produção cartográfica oficial, também desempenha papel essencial em atividades como o georreferenciamento de imóveis rurais e urbanos, obras de engenharia, monitoramento de deformações crustais e até mesmo em estudos de dinâmica terrestre. Hoje, essa rede encontra-se integrada ao SIRGAS2000, sistema que unificou os referenciais latino-americanos em consonância com padrões globais, permitindo uma consistência espacial entre medições realizadas no Brasil e em qualquer outra parte do mundo. Portanto, a rede planimétrica representa não apenas um conjunto de pontos fixos no espaço, mas a garantia de coerência entre medições locais e globais.

A rede altimétrica tem como objetivo fornecer as altitudes ortométricas dos pontos de referência na superfície terrestre. Essa rede é estabelecida a partir de marcos implantados ao longo de linhas de nivelamento, que se conectam a marégrafos instalados no litoral, responsáveis por registrar o nível médio do mar. No Brasil, a referência altimétrica oficial está ligada ao Marégrafo de Imbituba, em Santa Catarina, que ao longo de décadas forneceu a base de dados para o nivelamento de alta precisão no território nacional. A construção dessa rede é fundamental, pois permite não apenas a determinação de cotas topográficas em obras de engenharia e projetos de infraestrutura, mas também estudos relacionados à hidrologia, à dinâmica de rios e represas, e ao monitoramento de variações do nível do mar, associadas às mudanças climáticas. No contexto moderno, a rede altimétrica é complementada por técnicas de altimetria por satélites e por modelos geoidais, que buscam representar com maior precisão o campo gravitacional da Terra e sua influência sobre o nível médio dos oceanos. No SGB atual, há uma integração entre o nivelamento clássico e as observações GNSS vinculadas a modelos geoidais regionais, permitindo maior compatibilidade entre altitudes ortométricas e elipsoidais. Assim, a rede altimétrica constitui um elo essencial entre o sistema terrestre e a realidade física da gravidade e da hidrodinâmica.

A rede gravimétrica é a responsável pela determinação das variações do campo gravitacional terrestre em pontos de referência distribuídos no território nacional. Essas medições são fundamentais porque a gravidade está diretamente associada à forma física da Terra e à definição do geoide, superfície equipotencial do campo gravitacional que serve como referência natural para as altitudes. No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em conjunto com instituições de pesquisa, desenvolveu uma rede gravimétrica baseada em observações com gravímetros relativos e absolutos, visando à construção de um modelo nacional do campo da gravidade. Essa rede permite não apenas a determinação mais precisa do geoide brasileiro, mas também aplicações práticas como correções em levantamentos topográficos, estudos geofísicos, prospecção mineral e monitoramento de variações tectônicas. No contexto atual, a integração da rede gravimétrica com técnicas espaciais, como o satélite GRACE e suas missões subsequentes, ampliou o alcance da Geodésia brasileira, permitindo monitorar redistribuições de massa na Terra relacionadas a processos climáticos, hidrológicos e tectônicos. Dessa forma, a rede gravimétrica não se limita a fornecer dados de caráter geodésico, mas desempenha papel estratégico no estudo e compreensão de fenômenos globais, reforçando a importância da integração entre redes planimétrica, altimétrica e gravimétrica no SGB.

O termo datum geodésico refere-se ao conjunto de parâmetros que definem a posição, a orientação e a escala de um sistema de coordenadas utilizado para representar a Terra. Em termos práticos, um datum é composto pela definição de um elipsoide de referência, pela fixação de sua origem e orientação em relação à Terra, e pela determinação da escala que relaciona distâncias medidas no elipsoide com as distâncias físicas observadas na superfície terrestre. Os datums podem ser classificados em locais, quando ajustados para melhor representar uma região específica, ou globais, quando concebidos para fornecer uma representação coerente da Terra como um todo. A escolha do datum tem implicações diretas em levantamentos e aplicações cartográficas, pois diferentes definições podem resultar em discrepâncias de até centenas de metros nas coordenadas de um mesmo ponto. No Brasil, a evolução dos datums geodésicos reflete a própria evolução da Geodésia nacional, partindo de referenciais locais, como o Córrego Alegre, passando por sistemas intermediários como o SAD69, até a adoção do sistema global SIRGAS2000. Com isso, compreender a definição e a evolução dos datums é essencial para entender a trajetória do Sistema Geodésico Brasileiro e sua integração às práticas internacionais.

O Datum Córrego Alegre, implantado em 1961, foi o primeiro datum geodésico de abrangência nacional no Brasil. Ele foi baseado no elipsoide internacional de Hayford (1924) e tinha como ponto de origem a estação Córrego Alegre, localizada no estado de Minas Gerais. Esse datum foi concebido para atender às necessidades da cartografia nacional em uma época em que os métodos de observação eram essencialmente terrestres, baseados em triangulação clássica e observações astronômicas. Apesar de ter representado um grande avanço para a Geodésia brasileira, o Córrego Alegre possuía limitações, especialmente pela sua natureza de datum local, ajustado para a região central do Brasil, o que provocava distorções crescentes à medida que se avançava para regiões periféricas do território. Ainda assim, o sistema foi amplamente utilizado em projetos cartográficos, obras de infraestrutura e levantamentos topográficos até a década de 1970. Sua relevância histórica está em ter sido a primeira tentativa de unificar, em escala nacional, as medições geodésicas no Brasil, estabelecendo as bases para os sistemas subsequentes.

Com o avanço das necessidades geodésicas e a limitação do Córrego Alegre, o Brasil adotou em 1967 o Astro Datum Chuá, também baseado no elipsoide internacional de Hayford. Esse datum foi estabelecido a partir de observações astronômicas realizadas na estação Chuá, também em Minas Gerais, e tinha como principal objetivo corrigir as deficiências regionais do Córrego Alegre. Apesar de sua implantação, o Astro Datum Chuá não chegou a ser amplamente utilizado, pois sua implementação coincidiu com o início da transição para métodos de posicionamento mais modernos, baseados em satélites artificiais. Assim, o Astro Datum Chuá é considerado uma experiência de caráter experimental, que buscava melhorar a coerência do sistema geodésico brasileiro, mas que acabou rapidamente superado por novas demandas e tecnologias emergentes. Contudo, seu legado foi importante por introduzir conceitos mais avançados de observação astronômica e por servir de elo de transição entre o Córrego Alegre e o sistema que se consolidaria na década seguinte: o SAD69.

O South American Datum 1969 (SAD69) representou um marco na Geodésia brasileira e sul-americana. Criado a partir de um esforço multinacional coordenado, o SAD69 teve como base o elipsoide de referência GRS67 (Geodetic Reference System 1967) e foi ajustado para representar de forma mais consistente todo o continente sul-americano. Sua origem estava localizada em Chuá, Minas Gerais, e o sistema foi adotado oficialmente no Brasil em 1975. O SAD69 trouxe grandes avanços ao possibilitar a integração de levantamentos em escala continental, oferecendo maior consistência cartográfica entre os países sul-americanos. No entanto, o advento das tecnologias espaciais revelou as limitações do SAD69, já que, por se tratar de um datum local, não possuía compatibilidade plena com os sistemas globais de navegação por satélite que começaram a se popularizar a partir da década de 1980. Essa incompatibilidade levou à necessidade de adotar um sistema verdadeiramente global, que atendesse não apenas às demandas nacionais, mas também à integração internacional. Esse processo culminaria no projeto de adoção do SIRGAS2000, marco da Geodésia moderna no Brasil.

A crescente utilização de sistemas de navegação por satélite, como o GPS, evidenciou a necessidade urgente de o Brasil abandonar os referenciais locais e adotar um sistema global compatível. O Projeto Mudança do Referencial Geodésico foi lançado oficialmente pelo IBGE na década de 1990, com o objetivo de substituir o SAD69 por um sistema alinhado ao referencial internacional ITRF (International Terrestrial Reference Frame). Esse projeto envolveu a instalação e densificação da Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo (RBMC), composta por estações GNSS distribuídas em todo o território nacional, conectadas ao Sistema de Referência Geocêntrico para as Américas (SIRGAS). Além disso, foram realizados trabalhos de atualização das redes altimétrica e gravimétrica, visando garantir a compatibilidade entre todos os subsistemas do SGB. A implementação do novo sistema representava não apenas um avanço técnico, mas também uma exigência estratégica, já que a dependência de referenciais locais poderia comprometer a precisão e a confiabilidade de levantamentos modernos, especialmente os vinculados a satélites.

O SIRGAS2000 (Sistema de Referência Geocêntrico para as Américas) foi oficialmente adotado no Brasil em fevereiro de 2005 como o novo sistema geodésico de referência. Ele está alinhado ao ITRF2000 e fundamenta-se em um datum global, geocêntrico e dinâmico, compatível com as técnicas modernas de Geodésia espacial. Diferentemente dos datums locais, o SIRGAS2000 considera a Terra como um todo, incluindo oceanos e atmosfera, e sua origem está no centro de massa da Terra. Esse sistema permite uma integração perfeita com os sistemas globais de navegação por satélite, como GPS, GLONASS, Galileo e BeiDou, garantindo a precisão necessária para aplicações de engenharia, cartografia, georreferenciamento de imóveis rurais e urbanos, monitoramento de deformações da crosta e estudos climáticos. Além disso, o SIRGAS2000 é atualizado periodicamente por meio de soluções do ITRF, assegurando que esteja sempre em conformidade com os referenciais globais mais recentes. Sua implantação representou um divisor de águas para a Geodésia brasileira, elevando o país ao patamar dos padrões internacionais e possibilitando a integração plena em projetos científicos e tecnológicos de escala global.

A adoção do SIRGAS2000 trouxe inúmeros benefícios para o Brasil, especialmente no que diz respeito à unificação dos referenciais utilizados em diferentes áreas do conhecimento. O sistema tornou-se a base obrigatória para todas as atividades de georreferenciamento de imóveis rurais, exigidas pelo Incra desde 2008, além de servir como referencial único para a cartografia oficial do país. Em projetos de engenharia, como construção de rodovias, ferrovias, barragens e redes de energia, o SIRGAS2000 oferece maior precisão e consistência, evitando discrepâncias que antes ocorriam com a coexistência de múltiplos sistemas. Do ponto de vista científico, sua integração com o SIRGAS continental fortalece a cooperação regional na América do Sul, permitindo estudos conjuntos sobre deformações tectônicas, dinâmica do campo gravitacional e variações do nível do mar. Outro benefício relevante é sua aplicabilidade em tempo real, por meio da RBMC e de serviços de posicionamento online disponibilizados pelo IBGE, que oferecem coordenadas atualizadas com altíssima precisão para usuários de diferentes setores. Portanto, o SIRGAS2000 não apenas substituiu os antigos datums brasileiros, mas também promoveu uma revolução na forma como o território nacional é representado e monitorado.

Apesar dos avanços trazidos pelo SIRGAS2000, sua consolidação plena no Brasil ainda enfrenta desafios. Muitos acervos cartográficos e bases de dados continuam referenciados em sistemas antigos, como o SAD69, exigindo transformações de coordenadas para compatibilização com o novo sistema. Além disso, a manutenção da RBMC requer investimentos contínuos em infraestrutura, atualização tecnológica e capacitação de pessoal. Outro desafio é a integração entre as redes altimétrica e gravimétrica ao novo sistema, especialmente no que diz respeito à compatibilidade entre altitudes ortométricas e elipsoidais. Nesse contexto, o IBGE e a comunidade científica brasileira têm trabalhado no desenvolvimento de modelos geoidais nacionais cada vez mais precisos, capazes de integrar medições GNSS às altitudes físicas utilizadas em engenharia e hidrologia. O futuro do SGB aponta para uma integração cada vez maior entre técnicas espaciais e observações terrestres, reforçando o papel estratégico do país em estudos de mudanças climáticas, dinâmica tectônica e monitoramento ambiental. Assim, a consolidação do SIRGAS2000 e a superação desses desafios são fundamentais para garantir que o Brasil continue alinhado às práticas internacionais da Geodésia.

Em síntese, o Sistema Geodésico Brasileiro passou por uma trajetória de transformações que refletem tanto a evolução da ciência geodésica quanto as demandas crescentes da sociedade. Desde os primeiros referenciais locais, como o Córrego Alegre e o Astro Datum Chuá, passando pela consolidação do SAD69, até a adoção do SIRGAS2000, observa-se um movimento contínuo em direção à integração com os padrões globais e ao aumento da precisão das medições. As redes planimétrica, altimétrica e gravimétrica, aliadas à definição dos datums, compõem a espinha dorsal desse sistema, permitindo aplicações que vão da cartografia básica ao monitoramento de fenômenos globais. O SIRGAS2000, como atual referencial, representa não apenas um avanço técnico, mas um marco estratégico para o Brasil, inserindo-o definitivamente no cenário internacional da Geodésia. Contudo, sua plena consolidação depende de esforços contínuos de atualização, manutenção e integração de dados. Assim, compreender o histórico e o estado atual do SGB é essencial não apenas para profissionais da área, mas também para a sociedade que depende cada vez mais de informações espaciais precisas e confiáveis.

Referências

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Uma abordagem sobre: Sistemas Geodésicos de Referência - Constantes Fundamentais e Suas Evoluções, Sistema de Coordenadas Equatoriais, Movimento do Polo, Sistema Celeste, Sistema Terrestre e Sistema Orbital.

Os sistemas geodésicos de referência constituem a espinha dorsal da Geodésia moderna, pois fornecem os referenciais matemáticos e físicos necessários para descrever a forma, a posição e a orientação da Terra e dos objetos nela localizados. Sem esses sistemas, seria impossível obter medidas precisas de posicionamento, acompanhar a dinâmica da crosta terrestre ou realizar observações astronômicas consistentes. Em termos conceituais, um sistema geodésico de referência é composto por parâmetros bem definidos, como origem, orientação dos eixos, escala e modelo da forma da Terra. Sua aplicação é abrangente, alcançando desde a cartografia e o georreferenciamento de imóveis até a navegação de satélites e aeronaves. Assim, compreender sua natureza e evolução é fundamental para qualquer profissional ou pesquisador das ciências da Terra e do espaço.

A importância desses sistemas cresce à medida que a sociedade depende cada vez mais de tecnologias baseadas em posicionamento e tempo, como o GNSS (Global Navigation Satellite Systems), que inclui GPS, GLONASS, Galileo e BeiDou. Os sistemas de referência fornecem a base para que tais tecnologias possam funcionar de maneira precisa e globalmente unificada. Além disso, eles não se limitam a representar a Terra como um corpo físico; também envolvem referenciais celestes e orbitais que conectam observações astronômicas à superfície terrestre. Dessa forma, os sistemas geodésicos de referência constituem uma ponte entre o espaço e a Terra, permitindo integrar informações que variam desde a escala local até fenômenos globais, como mudanças climáticas e deslocamentos tectônicos.

Entre os fundamentos essenciais da Geodésia estão as chamadas constantes fundamentais, que são grandezas físicas e unidades de medida que sustentam a definição dos referenciais. Tradicionalmente, as três grandezas fundamentais da Física são comprimento, massa e tempo, representadas respectivamente pelo metro, quilograma e segundo. Essas unidades passaram por diversas redefinições ao longo da história, buscando maior precisão e independência de artefatos físicos. Inicialmente, o metro foi concebido em 1791 como a décima milionésima parte do quadrante do meridiano terrestre, estabelecendo uma ligação direta com dimensões geodésicas da Terra. Essa definição, entretanto, mostrou-se limitada devido a imprecisões nas medições geodésicas da época.

Com o avanço da metrologia, em 1889 o metro passou a ser definido por um protótipo físico de platina-irídio, armazenado no Bureau Internacional de Pesos e Medidas, em Sèvres, França. Essa redefinição trouxe maior estabilidade, mas ainda estava sujeita a variações físicas, como alterações de temperatura. A busca por padrões universais levou à adoção, em 1960, de uma definição baseada em fenômenos atômicos, utilizando o comprimento de onda da radiação do átomo de criptônio-86. Por fim, em 1983, consolidou-se a definição atual: o metro é a distância percorrida pela luz no vácuo em um intervalo de 1/299.792.458 segundos, tornando-se dependente de uma constante universal imutável — a velocidade da luz. Essa evolução mostra como a ciência busca eliminar dependências de objetos físicos e fundamentar-se em leis universais.

Processo semelhante ocorreu com o quilograma e o segundo. O quilograma, inicialmente definido como a massa de um cilindro de platina-irídio, passou, em 2019, a ser estabelecido pela constante de Planck (h), medida por meio da balança de Kibble. Já o segundo, que durante séculos foi relacionado à rotação da Terra, ganhou definições mais estáveis: primeiro baseado no ano trópico de 1900, e, desde 1967, fixado na frequência da radiação emitida pela transição hiperfina do átomo de césio-133. Essas redefinições revelam não apenas avanços tecnológicos, mas também o impacto direto na Geodésia, pois posicionamentos de alta precisão, como os realizados pelo GNSS, dependem da exatidão absoluta dessas constantes.

O sistema de coordenadas equatoriais é um dos mais utilizados na Astronomia e na Geodésia Celeste, por estar diretamente vinculado à esfera celeste e por permitir determinar a posição dos astros independentemente do local do observador. Ele tem como plano fundamental o equador celeste, que é a projeção do equador terrestre na esfera celeste, e como eixo principal o prolongamento do eixo de rotação da Terra. Suas duas coordenadas básicas são a ascensão reta (α) e a declinação (δ), que funcionam de modo análogo à longitude e latitude na superfície terrestre. Esse sistema é particularmente útil por ser universal, ou seja, qualquer observador na Terra pode utilizá-lo sem que suas medidas dependam do local de observação.

A declinação é definida como o ângulo entre o plano do equador celeste e a direção do astro, variando de +90° no polo norte celeste a -90° no polo sul celeste. Já a ascensão reta é medida a partir do ponto vernal, em direção leste, podendo ser expressa em graus ou em horas, sendo que 24h correspondem a 360°. Além dessas duas coordenadas, o sistema equatorial também pode utilizar o ângulo horário, que mede a distância angular entre o meridiano local do observador e o círculo horário do astro. Esse conjunto de parâmetros fornece meios altamente precisos para descrever o posicionamento de estrelas, planetas e satélites artificiais.

Entretanto, o sistema equatorial não é estático. A rotação irregular da Terra, sua precessão, nutação e até movimentos como a oscilação de Chandler provocam variações perceptíveis nas coordenadas equatoriais ao longo do tempo. Para lidar com essas mudanças, são definidos catálogos de estrelas com épocas de referência, como 1950.0 e 2000.0. Atualmente, o padrão internacional é o International Celestial Reference Frame (ICRF), baseado em quasares e rádio-fontes extragalácticas praticamente fixas. Isso permite manter a estabilidade necessária para observações de altíssima precisão, essenciais não apenas para a Astronomia, mas também para a navegação por satélite e a Geodésia espacial.

O movimento do polo é um dos fenômenos mais relevantes dentro da Geodésia, pois está diretamente ligado às variações no eixo de rotação da Terra. Diferente da ideia de um eixo fixo, sabe-se que a orientação da Terra em relação ao espaço inercial sofre variações temporais que afetam tanto a posição dos polos geográficos quanto a medição do tempo. Entre os componentes principais estão a precessão, a nutação e a oscilação de Chandler. A precessão é o movimento lento e contínuo do eixo terrestre, que descreve um cone de aproximadamente 23,5° em torno da perpendicular ao plano da eclíptica, completando um ciclo em cerca de 26 mil anos. Já a nutação é um movimento de menor amplitude, superposto à precessão, causado principalmente pelas forças gravitacionais da Lua e do Sol, com períodos variando de dias a 18,6 anos.

Além da precessão e da nutação, existe a chamada oscilação de Chandler, descoberta por Seth Carlo Chandler em 1891. Esse fenômeno corresponde a uma oscilação quase periódica do eixo de rotação da Terra, com período médio de 14 meses e amplitude de aproximadamente 3 a 4 metros na superfície terrestre. Essa oscilação, somada a variações anuais e sazonais causadas por deslocamentos de massas na atmosfera, oceanos e interior do planeta, contribui para que o polo geográfico não permaneça em posição estática. Para a Geodésia, essas variações são críticas, pois impactam diretamente os sistemas de referência terrestres e, consequentemente, todas as aplicações de posicionamento de alta precisão, como GNSS e altimetria satelital.

O estudo do movimento do polo e de seus efeitos é realizado por instituições internacionais como o International Earth Rotation and Reference Systems Service (IERS), responsável por monitorar continuamente esses parâmetros e fornecer correções para observações astronômicas e geodésicas. A integração entre sistemas celestes e terrestres depende desses parâmetros de orientação da Terra, conhecidos como Earth Orientation Parameters (EOP), que permitem transformar coordenadas obtidas em referenciais celestes para sistemas terrestres e vice-versa. Esse monitoramento é vital não apenas para a Geodésia, mas também para a Astronomia, a previsão de órbitas de satélites, o funcionamento de sistemas de navegação e até para estudos sobre mudanças climáticas globais.

O conceito de sistema celeste está vinculado à Astronomia e à Astrometria, sendo um referencial fixo utilizado para determinar a posição dos astros. Sua origem não é materializável diretamente, por isso é convencionada a partir de objetos extragalácticos considerados praticamente fixos no céu, como quasares e rádio-fontes. Dois sistemas principais são empregados: o Barycentric Celestial Reference System (BCRS), centrado no baricentro do sistema solar, e o Geocentric Celestial Reference System (GCRS), centrado no geocentro da Terra. O primeiro é utilizado para o estudo de planetas e estrelas, enquanto o segundo é mais apropriado para satélites e objetos próximos da Terra.

Atualmente, a referência mais utilizada é o International Celestial Reference System (ICRS), cuja realização prática é o International Celestial Reference Frame (ICRF), baseado em observações de rádio-fontes extragalácticas por técnicas de interferometria de base muito longa (VLBI). Essa escolha garante estabilidade, já que tais objetos, a bilhões de anos-luz de distância, não apresentam movimento próprio mensurável. Antes da adoção do ICRS, utilizavam-se catálogos de estrelas, como o FK5, e posteriormente dados aprimorados por missões espaciais como o satélite Hipparcos. No entanto, as estrelas, ao contrário dos quasares, apresentam movimentos próprios que podem comprometer a estabilidade de longo prazo do sistema.

O sistema celeste, além de sua relevância para a Astronomia, é imprescindível para a Geodésia moderna, pois serve como referencial inercial para a descrição do movimento da Terra e de satélites artificiais. A transformação entre os referenciais celeste e terrestre é mediada pelos parâmetros de orientação da Terra, que incluem precessão, nutação, variação do tempo universal (UT1) e coordenadas do polo. Essa conexão é essencial, por exemplo, para que medidas realizadas por GNSS, SLR (Satellite Laser Ranging) e DORIS possam ser integradas em um único sistema global coerente.

O sistema terrestre representa a Terra em seu movimento de rotação e fornece a base para todas as medições realizadas na superfície. O mais importante sistema de referência terrestre é o International Terrestrial Reference System (ITRS), cuja realização prática é o International Terrestrial Reference Frame (ITRF). Esse sistema é definido com origem no centro de massa da Terra, incluindo oceanos e atmosfera, com orientação alinhada ao equador terrestre e ao meridiano de Greenwich. O ITRF é atualizado periodicamente para incorporar variações decorrentes de movimentos tectônicos, marés terrestres e redistribuição de massas.

A manutenção do ITRF é de responsabilidade do IERS, que combina observações de diferentes técnicas espaciais, como GNSS, SLR, VLBI e DORIS, em redes de estações distribuídas globalmente. A condição No Net Rotation (NNR) assegura que o sistema não apresente rotação líquida em relação à crosta terrestre como um todo. Isso significa que, embora placas tectônicas individuais se movimentem, o referencial é definido de forma a minimizar o movimento relativo global. Essa definição garante estabilidade para aplicações em monitoramento de deformações da crosta, mudanças climáticas e navegação global.

O sistema terrestre é complementado por redes regionais e nacionais, como o SIRGAS na América do Sul e a RBMC no Brasil, que densificam o ITRF para aplicações locais. Esses sistemas são fundamentais para o georreferenciamento de imóveis, para a cartografia oficial e para a integração com observações espaciais. Ao mesmo tempo, a conexão entre o sistema terrestre e o sistema celeste permite que observações realizadas a partir da superfície da Terra sejam compatíveis com referenciais inerciais, viabilizando análises globais de alta precisão.

Os sistemas orbitais constituem referenciais intermediários utilizados para descrever o movimento de satélites em torno da Terra. Um satélite em órbita pode ser descrito em relação a três sistemas principais: o sistema celeste, o sistema terrestre e o sistema orbital. O sistema orbital é definido no plano da órbita do satélite, sendo particularmente útil para calcular parâmetros orbitais, como inclinação, longitude do nodo ascendente e anomalia verdadeira. Esse sistema permite transições entre a dinâmica orbital e observações realizadas a partir da Terra, conectando medições locais ao espaço.

Na prática, o sistema orbital está intimamente ligado ao sistema terrestre e ao sistema celeste. O posicionamento por GNSS, por exemplo, requer a determinação precisa da órbita dos satélites em relação ao sistema celeste, enquanto as correções de observação são aplicadas no sistema terrestre. A combinação entre esses referenciais exige transformações matemáticas rigorosas, que incorporam parâmetros de orientação da Terra e modelagens de efeitos gravitacionais, atmosféricos e relativísticos. Dessa forma, o sistema orbital é indispensável para a navegação moderna, para o monitoramento de satélites artificiais e para missões espaciais.

A relevância dos sistemas orbitais também se estende a áreas como a altimetria satelital, o sensoriamento remoto e a geodésia espacial. O estudo de variações do nível médio do mar, de deformações da crosta e do campo gravitacional depende de medições realizadas por satélites cujas órbitas precisam ser conhecidas com extrema precisão. Nesse contexto, a interação entre sistemas celestes, terrestres e orbitais forma uma tríade indispensável para a compreensão global da Terra e de seus fenômenos dinâmicos.

Em síntese, os sistemas geodésicos de referência são pilares da ciência moderna, permitindo a integração entre medições realizadas na superfície terrestre e observações espaciais. As constantes fundamentais, redefinidas ao longo da história para maior precisão, sustentam esses sistemas e garantem sua confiabilidade. O sistema de coordenadas equatoriais possibilita a localização precisa de astros, enquanto o movimento do polo evidencia a natureza dinâmica da Terra. Os sistemas celeste, terrestre e orbital, por sua vez, constituem referenciais interconectados que permitem transformar coordenadas entre o espaço e a superfície terrestre, assegurando a coerência global necessária para aplicações científicas, tecnológicas e sociais. Dessa forma, compreender a estrutura e a evolução desses sistemas não é apenas um exercício acadêmico, mas um requisito essencial para o avanço das Geociências e para a sociedade que depende de tecnologias de posicionamento cada vez mais sofisticadas.

Referências

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